26.7.11

Por que o Laerte se veste de mulher

Paralelamente à matemática necessária ao OWNED, meu livro novo, estudei programação por diversos métodos desengonçados, nenhum dos quais consistiu em aprender uma linguagem de programação o suficiente para criar um programa de computador; mas entendi a alegria da recursão (ou recursividade) computacional. Se eu precisar te explicar "papel", posso escolher dizer que é uma "pasta fibrosa feita de árvore moída", mas primeiro tenho que ter certeza que você sabe o que é "árvore", "pasta", "fibrosa" e "moída", porque o conceito que preciso te explicar é recursivo – depende de objetos previamente definidos a cuja memória você vai recorrer. (Discute-se se todo conceito é assim, mas nem vou comprar essa briga.)

Tentei criar um livro que pudesse ser lido mais de uma vez. Isso é uma experiência comum para leitores: ler o mesmo livro de forma diferente a cada leitura. As memórias, não só de suas experiências pessoais como a da própria leitura do livro, interferem numa segunda (ou terceira ou enésima) leitura. Um livro cujo texto é materialmente diferente a cada vez, como o meu, só exacerba essa característica.

Agora vou pedir para você visualizar o yin, o princípio feminino-negativo. Negativo não como ruim, mas como lado B, passivo, receptivo. (Ok, estou começando a soar hippie demais para o meu próprio gosto, mas fiquem comigo, por favor.)

Aí voltamos a toda a história da literatura (de toda arte) e à mulher como a tela em branco em que a humanidade projeta seus desejos, metas e medos. Como expressar algo que só vive na entrelinha? Existe autoexpressão no caso do passivo?
Não vou explicar demais e estragar a experiência, mas se você é absolutamente refratário à menor revelação de enredo ou explicação de obra, é melhor pular para o último parágrafo.

A recursão é um jeito de fazer a entrelinha falar. Cada final do livro é projetado para criar uma ligeira sensação de insatisfação, o que deve fazer o leitor ir atrás de outro final. Ao ler o livro uma segunda vez, ele vai satisfazer algumas de suas dúvidas quanto ao primeiro caminho, mas vai descobrir novas insatisfações e querer tomar outros caminhos para ler ainda outro final. Quando achar que está quase entendendo do que se trata, vai tomar outra puxada de tapete: as regras subjacentes são ainda mais complexas do que pensava. E assim por diante.

Tinha uma brincadeira que eu fazia enquanto trabalhava no OWNED: "é programação orientada a mulher-objeto" (assim como o nouveau roman é "romance orientado a objetos"). No entanto, elas são o conteúdo e a razão de ser do livro. Meu André nunca é caracterizado fisicamente, e sua caracterização psicológica depende da mulher que ele corteja e das escolhas que você fez por ele. André, como narrador que é, está irremediavelmente ancorado ao próprio umbigo; nunca pode ver as moças conversando sobre ele em sua ausência, dizendo o que realmente pensam.

Ou seja, André trabalha no escuro, projetando aquilo que cada mulher deve querer dele e tentando oferecer isso (ou não). Por sua vez, cada moça forma sua própria imagem de André; a maioria delas não está irremediavelmente interessada por ele; segundo as escolhas dele, ela simplesmente não vai estar mais disponível. As mulheres que André vai encontrando ao longo de suas tentativas têm suas próprias vidas, nas quais ele se integra das mais variadas formas; às vezes como acessório, às vezes como peça fundamental, às vezes até como intruso. E apesar de estar tão ancorado ao ponto de vista do narrador quanto o próprio, o leitor que jogar suficientes vezes vai perceber que várias moças se conheciam independente de André.

Acho que as leitoras vão gostar mais do meu livro do que os leitores no sentido de que, apesar de fantasioso, ele apresenta a vida como ela é, não como deveria ser (Nelson Rodrigues, gênio). A bananização dos protagonistas masculinos de chick lit como seres incondicionalmente atrelados a uma única mulher, incapazes de acessar pornografia, achar chato um jantar romântico ou mesmo de mudar de ideia se a mulher em questão é consistentemente parva e/ou maléfica enerva a mim e a minhas amigas. Com OWNED, em vez de viver mais uma vez a angústia de não saber o que um rapaz de que gostam está pensando, como em tantos livros recentes para adolescentes e jovens adultas, as mulheres podem viver a angústia de não saber o que a mulher desejada está pensando dentro da pele do tal rapaz. É um livro em prol da compreensão mútua. Afinal, ambos os sexos têm mais é que aprender a ler nas entrelinhas e não acreditar em toda manha e eufemismo do outro (e do mesmo).

12.7.11

Seventeen

Vi numa livraria o Axolotle atropelado, de Helene Hegemann. Como axolotle é um bicho que me seduz, peguei para ver qual é e, vejam só, era um livro escrito por uma autora de apenas dezessete anos. (Eu mereço.)

Volta e meia surge a pauta da valorosa autobiografia de jovem rica rebelde. Os franceses têm a Lolita Pille (Hell Paris). Os italianos têm a Melissa Panarello (Cem escovadas antes de ir para a cama). Nós, brasileiros, temos a Maíra Dias Gomes (Fugalaça). Os americanos foram mais espertos e transformaram a deles em franquia e série de TV (Cecily Von Ziegesar, com a Gossip Girl). Agora os alemães também têm a sua.

De todos esses, só tive paciência de ler de cabo a rabo o Hell (agora onipresente no RJ naquela fotografia linda da peça). Sim, comprei o livro, gastei meu suado dinheiro com ele. Eu estava numa idade mais inocente... esperava na verdade destrinchar os critérios que a mídia usa para elogiar alguma coisa; e descobri que não havia explicação possível senão a da pauta, porque aquilo era ruim demais da conta. Quer dizer, não é denúncia nem novidade que adolescentes ricas entediadas brinquem de sexo, dorgas, roquenroll e consumismo. A linguagem não me trouxe nenhum arrebatamento ou desconforto. A história é desconjuntada. Por que, então, a mídia dá atenção a esse tipo de coisa? Por que as meninas compram e leem fascinadas? Porque é fofoca, vontade de saber da vida dos outros, de se identificar legitimando e/ou de viver por procuração. Tipo um romance de banca para a nova geração, com baboseiras ligeiramente diferentes e expectativas irreais idênticas.

Nessas autobiografias de moça rica identifico uma dicção autodeslumbrada e um forte pendor borderline. Lendo esse tipo de literatura fico com a sensação de que, se soubessem que ninguém falaria delas depois (bem ou mal), as autoras-personagens não achariam nada do que fazem tão excitante assim. Não teriam ânimo para escrever.

Mas agora vamos falar de livros bons, ok? Livros bons.

A japonesa Risa Wataya também lançou um livro aos 17 anos. Não sei da situação social dela, nem do quanto é autobiográfico. Japoneses são misteriosos. Já começa por aí.

Para ler os livros dela você tem que saber japonês, francês, alemão, italiano ou coreano. Eu falo francês. O Install ela lançou com dezessete anos. É sobre uma adolescente e um menino de dez anos que lançam um serviço de chat sexy online em que os dois fazem as garotas. L'appel du pied (algo como O chamado do pé), cujo título original é Keritai Senaka (algo como As costas que você quer chutar), é sobre uma garota que descobre que está apaixonada por um estafermo da escola quando sente impulsos irresistíveis de dar uma voadora nele pelas costas. ISSO é bom. Li ambos e de vez em quando dou uma relidinha. Recomendo.

Quanto ao axolotle: o melhor romance adolescente alemão que li nos últimos tempos não tem nada a ver com realidade - não no sentido de reproduzi-la. Também não foi escrito por uma adolescente. Se chama A menina sem qualidades (por Juli Zeh). O título nacional faz menção ao romance de Musil, mas, ao fim do romance, as notas de tradução do ótimo Backes elucidam o título original, Spieltrieb (algo como Pulsão de jogo). Com efeito, é um livro que bebe muito da teoria dos jogos, tanto no tema como na estrutura. Ada, uma adolescente "não linda" e superdotada, que se proclama filha do niilismo, encontra seu parceiro de jogo em Alev, jovem totalmente impotente que, na falta de melhor passatempo, trava uma partida de lances sucessivos em que Ada, o professor Smutek e toda a sociedade são os peões. Ada começa a ficar à vontade no mundo com a possibilidade de ter uma identidade, finalmente, nem que seja a de peão, e daí em diante os desdobramentos me surpreenderam. Smutek também é um grande personagem, representando a perplexidade de quem ainda tem uma história pra contar frente ao jogo que tomou conta de tudo.

Peguei A menina sem qualidades na livraria porque achei a capa diferente, me chamou a atenção. Depois a orelha. Depois gostei do que vi ao folhear. Depois de comprado, me deparei com teoria de jogos pelo livro todo e me apaixonei. Foi uma grande coincidência, já que estava estudando exatamente isso para escrever meu OWNED. Em suma, leiam A menina sem qualidades. Leiam ele e deixem o axolotle em paz.