16.8.15

Será que o presente é o futuro? - Notas sobre tempos verbais

Uma crítica recente de Antônio Ramos da Silva ao meu último romance, A vez de morrer, elogiava bastante o livro, exceto pelo uso de pretérito mais-que-perfeito (qualificado de "insistente"). Não é a primeira vez que questionam esse uso, então vou brincar de oficina literária aqui e explicitar o que há por trás do meu uso desse tempo verbal, dentro da tradição literária.

Línguas latinas, como o português, francês e espanhol, costumam render frases maiores para exprimir "uma mesma" ideia do que línguas germânicas, como o inglês e o alemão. (Coloco "uma mesma" entre aspas porque, enquanto não está em palavras, não considero ainda essa pré-ideia uma ideia, e uma vez posta em palavras de idiomas diferentes, já não é a mesma ideia. Sei porque traduzo...) Daí o autor de língua latina que quer exprimir uma ideia complexa precisa se virar nos trinta para não deixar a frase irremediavelmente feia e troncha, cheia de "de" e de verbos auxiliares.

Para evitar esses verbos auxiliares, um truque comum na literatura em francês é usar o passé simple, que equivale mais ou menos ao nosso pretérito perfeito e, na terceira pessoa do singular, termina em "a". (Por exemplo: "ele passou" fica "il passa". Para um leitor que fala português e não francês, fica parecendo o nosso presente do indicativo.) Acontece que esse tempo verbal nunca é usado na fala cotidiana em francês. No dia a dia eles usam o passé composé, com verbo auxiliar (il a passé), também equivalente ao nosso pretérito perfeito. É mais fácil de conjugar, mais coloquial. Mas na hora de narrar... recorrem ao "empolado" passé simple. A única explicação para isso me parece que é para a frase ficar menos pesada.

Em português, além de recorrer ao mais-que-perfeito, outra solução é colocar o livro todo no presente. Fiz isso no livro A feia noite, meu segundo romance, após No shopping. Assim, você terá lindos e sucintos verbos terminados em "o" na primeira pessoa (passo) e "a" na terceira (passa). Em terceira pessoa, nosso presente do indicativo fica sumário como o passé simple do francês, sem a empolação. Ao se referir ao passado, você geralmente vai usar o pretérito perfeito - quase nunca terá que usar tempos compostos. Aparentemente, só vantagens. Sendo assim, será que o presente (do indicativo) é o futuro? Todos os livros que se almejem bons/de sucesso devem ser escritos no presente?

Creio que não. No caso de A feia noite, tratava-se de personagens em crise, passando por situações que os tiravam de sua zona de conforto todos os dias (ou melhor, todas as noites, pois o livro se passa quase todo à noite). Estava difícil continuar escrevendo no passado, denotando que os personagens teriam sobrevivido a tudo aquilo (e depois de tudo sobraria alguém para narrar). Além do mais, o livro é propositalmente empolado. Para tirar um pouco dessa empolação do nível da frase e tirar a impressão de que os personagens sobreviveriam para contar (no passado) o que lhes acontecera, passei o livro todo para o presente. Ficou muito melhor. A história deslanchou e pude terminá-la.

Mas, no A vez de morrer, não senti vontade de usar o mesmo recurso. Até pensei em usá-lo, pois novamente era uma personagem saindo de sua zona de conforto e se arriscando (inclusive a morrer); mas o vocabulário que eu usava era mais simples, e eu ainda queria fazer referência a estruturas tradicionais do romance. Preferi deixar os mais-que-perfeito lá. Mas os diálogos são "realistas", coloquiais. Confiei que os leitores entenderiam que era isso que eu pretendia: apontar para a tradição sem deixar de mexer nela.

Então não é que escrever livros em português no presente do indicativo seja o futuro, mas é preciso balancear o que você, autor, quer com as necessidades da história -- sabendo que nunca vai agradar a todo mundo. Que pelo menos agrade a sua consciência artística, senso estético ou seja lá como você chame aquilo que te põe para escrever.