Jogo 13 da CLB 2007: Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, versus Leda, de Roberto Pompeu de Toledo
Qual foi o caso aqui neste jogo? Um dos
livros julgados teve de enfrentar adversários fortes nas suas chaves de origem
para chegar aqui; o outro ganhou pelo menos uma partida por sorte ou, melhor
dizendo, por motivos técnicos. Mas só me cabe apitar a partida entre os que
efetivamente li: Um defeito de cor,
de Ana Maria Gonçalves, versus Leda,
de Roberto Pompeu de Toledo .
Não é pelo exótico que Um defeito de cor encanta. Nem pelo
toque politicamente correto de ser um “romance afro-brasileiro”. (Eu até torço
o nariz para essas coisas, quando feitas com uma indevida ênfase à causa que
defendem, porque arte comprometida raramente escapa de ser chata.) Um defeito de cor é simplesmente uma
história muito bem contada.
O livro tem 950 páginas. Todos os que me
viram lendo Um defeito de cor
arregalaram os olhos: “uau, que tijolão!”, “parece o meu livro de química!” Matei duas moscas durante a leitura
simplesmente depositando o volume sobre elas. Além de ser um texto extenso, a
autora escolheu não usar travessões ou aspas para representar a fala dos
personagens: é tudo paráfrase, encaixando-se em enormes parágrafos de texto
corrido -- a típica mancha gráfica espanta-leitor. Cadê o incentivo para
comprar (e efetivamente pegar para ler) o livro? É duro imaginar como é que o leitor comum
irá vencer esse Everest – até que se abra o livro na primeira página do
primeiro capítulo.
A leitura avança rápido e bem, com uma
taxa adequada de repetições, referências a acontecimentos (passados e futuros)
e advérbios bem colocados para ajudar a memória
e incentivar o progresso. A leitura desacelera sempre que há excesso de
didatismo, mas só emperra mesmo por volta da
página 400, a
parte que trata da revolta dos malês (negros muçulmanos), retomando o impulso
lá pela 550. As paráfrases dos diálogos funcionam que é uma beleza, muito
melhor do que, por exemplo, a técnica de José Saramago de separar cada fala por
vírgulas. Ficamos até conhecendo melhor a narradora através de sua forma de refrasear
o que outros disseram.
A história: a pequena Kehinde é arrancada
à África para ser vendida como
escrava e,
até chegar à costa brasileira, perde toda a família, inclusive uma irmã gêmea (ibêji,
na cultura iorubá). Rebatizada Luísa, é comprada para virar mucama, cresce,
fica forra, participa da revolta dos malês, volta
à África e depois decide voltar ao Brasil.
A cada bordoada que Kehinde toma da vida,
desde criancinha, ela vai ficando mais forte e mais esperta – e o leitor, mais
encantado com sua fibra. Kehinde/Luísa narra já velha, de um ponto fixo no
futuro, e em primeira pessoa. Assim, sua narrativa é uniforme justamente porque
narrada do ápice do amadurecimento. Só tem um porém. Depois que nasce o segundo
filho, Omotunde, Kehinde começa a se dirigir a ele diretamente por você, alternando com a terceira pessoa
usada desde o começo do livro. Há coisas como
“...meu novo filho chorou” e “seu pai queria fazer de você um doutor” no mesmo
parágrafo. Isso dá a impressão de que a velha Kehinde não tem lá muita
concentração, e não parece ter sido intencional.
Apesar de episódios que podem ser vistos
como fortes, não há grandes momentos
de sentimentalismo ou autopiedade - nem de seu oposto, tédio ou
cinismo - em Um defeito de cor.
Se o leitor quiser senti-los por Kehinde, ele que sinta. A sensibilidade da
(ótima) personagem não é a nossa: não é a do leitor nem provavelmente a da
autora. Mais um ponto positivo.
Outro romance que trabalha bem a
mitologia africana, inclusive usando o tema da ibêji morta, é A menina Ícaro, da nigeriana radicada em Londres Helen Oyeyemi.
Significativamente, é comparado a este seu “gêmeo” que Defeito mostra mais seus defeitos: é explanatório demais, como se de vez em quando Kehinde /Luísa
se destacasse do seu pano de fundo histórico e fosse bem lampeira até a lousa
dar uma aulinha sobre cultura iorubá (ou geografia baiana, ou funcionamento de
engenhos...). Em A menina Ícaro fica
totalmente a critério do leitor conhecer mais sobre essa cultura – as
explicações são propositalmente embaçadas. Mas a Wikipédia, a Barsa e a
Brittanica existem para isso mesmo.
É muito mais difícil explicar por que um
livro é bom do que por que outro não o é. É
por isso que esta resenha vai ficando por aqui para se deter sobre os problemas
de Leda.
Sinopse: Adolfo Lemoleme, jovem professor
de literatura, começa a escrever a biografia de seu escritor e ídolo Bernardo
Dopolobo. Em Leda, os ingredientes
são os mais promissores: relação mestre/discípulo, mulheres, intrigas, vaidade
intelectual, metalinguagem. Ainda por cima, os personagens caminham num terreno
conhecido pelo autor, o acadêmico. Só que, de repente, dona Gigi, sogra de
Dopolobo e cozinheira de mão cheia, solta uma análise literária destas em plena
cozinha: “Eu vejo nessa história uma espécie de castigo contra esse país”. Ou
seja, quando a ação sai desse ambiente, a linguagem se esquece de sair junto.
No atribulado
começo há uma inútil inversão de pretensiosos adjetivos; depois, isto se
dilui e, se havia um propósito no exagero inicial, não fica muito claro. De
repente, há alguma conexão com uma das melhores coisas do livro: o retrato da
galardeação intelectual que vai se acumulando sobre Dopolobo e, depois, sobre
Lemoleme. Além das referências ao fiacre de Emma Bovary, evidenciando a
ascendência de Flaubert sobre o personagem Dopolobo (e muito possivelmente
sobre o autor), há a citação de livros inexistentes, um truque herdado de
Borges.
Leda tem o valor de construir personagens muito coerentes. Acontece que
eles são tão coerentes que só exibem o que se espera deles desde o princípio,
emperrando um tanto a leitura. Aliás, os nomes dos personagens são todos
sugestivos, coisa que angaria a antipatia de qualquer leitor bom em anagramas
ou idiomas. Bernardo Dopolobo. Adolfo Lemoleme. Felícia Faca. Doutor
Nochebuena. Professor Spielverderber. E por aí vai. O fato de haver trocas de ponto
de vista não ajuda – logo ficamos sabendo o que Dopolobo e sua atual mulher pensam de Lemoleme, cortando o suspense
pela raiz. Fosse diferente, Leda
poderia ter frutificado numa boa história de detetive em disfarce de acadêmica
(um Código Da Vinci menos medíocre).
O maior erro do livro está em descortinar
a intimidade dos personagens sem com isso chegar a iluminar os desvãos mais
sombrios de suas almas .
Aliás, nem era preciso ir pelo caminho da seriedade. Se a proposta fosse, por
exemplo, fazer pouco das intrigas e relações do mundinho literário – como fazem
A estrela sobe (Marques Rebelo) e o
recente Os atalhos de Samantha
(Márcio Paschoal) com a indústria musical –, poderíamos nos comprazer nessa
metalinguagem. Mas Leda caiu no
meio-termo e caiu mal. Solenizou a relação mestre-discípulo e sua inversão,
recorrendo a um quase humor que quase funciona. Não é que Roberto Pompeu
de Toledo não saiba fazer isso. A história O
pecado encoberto, parafraseada no epílogo de Leda, é excelente, cheia de ironia e movimento; se o livro todo
fosse assim, ganhava de Defeito
fácil, fácil. É que o autor procurou fazer algo de novo: uma jornada lítero-acadêmica,
com metalinguagem e ironia, que não se escorasse nem no moralismo humorístico (Flaubert),
nem na obsessão alfarrábica (Borges), e que resultasse em crítica e epifania. Fica
esse mérito, mesmo que a tentativa tenha resultado frustrada.
Um
defeito de cor dribla um grande número de páginas e
algumas explicações e inconsistências narrativas para marcar um golaço no
final: o de contar uma boa história. Embolou um pouco o meio de campo, mas jogou
com alegria e garra, sem esquecer do placar. Leda entrou em campo promissor, depois se perdeu e só fez ficar
mais lento no segundo tempo. Procurou inovar no esquema técnico e com isso deu
seus chutes a gol, mas marcar, que é bom, quase nada. Lembram do “Quadrado
Mágico” do Parreira? Pois é.
Bônus: Minha resenha da final da CLB 2007 Um defeito de cor (Ana Maria Gonçalves) versus Música perdida (Luiz Antonio de Assis Brasil)
Um defeito de cor
e Música perdida têm suas
similaridades: trajetórias de vida de brasileiros durante o século XIX. O
primeiro tomou um ângulo politicamente agradável, empregando uma linguagem de
“causo”; o segundo escolheu um viés erudito e uma forma de expressão elíptica.
Cada um à sua maneira, ambos são bons livros; justo mesmo seria declarar
empate. Nos pênaltis, a vitória foi de Música
perdida, pela objetividade e pelas boas pensatas.
Eu teria que ter lido mais livros para dar uma opinião mais sólida,
mas acho que Mãos de cavalo mereceria
ter ido mais adiante na Copa. A final foi entre dois livros bons, mas não
empolgantes; ficou um gosto de final de 94.