12.6.19

Copa de Literatura Brasileira 2007: uma resenha republicada


*Resenha publicada em 2007 no site "Copa de literatura brasileira". Republicada a pedidos!

Explicando: a Copa de Literatura Brasileira (CLB) foi um campeonato entre romances brasileiros publicados no ano anterior. Eram 16 romances que iam se derrotando em partidas, um contra o outro: os vencedores prosseguiam até a final. Participei de todas as edições como resenhista - nem lembro mais se foram 4 ou 5 edições. O site nem existe mais, mas a caixa de comentários pegava fogo (quem viveu, se lembra - a cultura dos prints não estava tão disseminada na época). Guardei muitos nomes e fiz muitos inimigos! :-) Pelo menos descobri muita literatura boa no caminho.

Jogo 13 da CLB 2007: Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, versus Leda, de Roberto Pompeu de Toledo


Como numa Copa do Mundo de verdade, muitas vezes o sorteio determina chaves fortes ou fracas. Assim, muitas vezes um favorito precisa eliminar outro para passar à próxima fase, enquanto um pangaré continua no campeonato sem grandes esforços - e a distorção entre o banco de apostas e a realidade faz qualquer torcedor querer gritar por “justiça” e até querer parar de acompanhar os jogos.

Qual foi o caso aqui neste jogo? Um dos livros julgados teve de enfrentar adversários fortes nas suas chaves de origem para chegar aqui; o outro ganhou pelo menos uma partida por sorte ou, melhor dizendo, por motivos técnicos. Mas só me cabe apitar a partida entre os que efetivamente li: Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, versus Leda, de Roberto Pompeu de Toledo.

Não é pelo exótico que Um defeito de cor encanta. Nem pelo toque politicamente correto de ser um “romance afro-brasileiro”. (Eu até torço o nariz para essas coisas, quando feitas com uma indevida ênfase à causa que defendem, porque arte comprometida raramente escapa de ser chata.) Um defeito de cor é simplesmente uma história muito bem contada.

O livro tem 950 páginas. Todos os que me viram lendo Um defeito de cor arregalaram os olhos: “uau, que tijolão!”, “parece o meu livro de química!” Matei duas moscas durante a leitura simplesmente depositando o volume sobre elas. Além de ser um texto extenso, a autora escolheu não usar travessões ou aspas para representar a fala dos personagens: é tudo paráfrase, encaixando-se em enormes parágrafos de texto corrido -- a típica mancha gráfica espanta-leitor. Cadê o incentivo para comprar (e efetivamente pegar para ler) o livro? É duro imaginar como é que o leitor comum irá vencer esse Everest – até que se abra o livro na primeira página do primeiro capítulo.

A leitura avança rápido e bem, com uma taxa adequada de repetições, referências a acontecimentos (passados e futuros) e advérbios bem colocados para ajudar a memória e incentivar o progresso. A leitura desacelera sempre que há excesso de didatismo, mas só emperra mesmo por volta da página 400, a parte que trata da revolta dos malês (negros muçulmanos), retomando o impulso lá pela 550. As paráfrases dos diálogos funcionam que é uma beleza, muito melhor do que, por exemplo, a técnica de José Saramago de separar cada fala por vírgulas. Ficamos até conhecendo melhor a narradora através de sua forma de refrasear o que outros disseram.

A história: a pequena Kehinde é arrancada à África para ser vendida como escrava e, até chegar à costa brasileira, perde toda a família, inclusive uma irmã gêmea (ibêji, na cultura iorubá). Rebatizada Luísa, é comprada para virar mucama, cresce, fica forra, participa da revolta dos malês, volta à África e depois decide voltar ao Brasil.

A cada bordoada que Kehinde toma da vida, desde criancinha, ela vai ficando mais forte e mais esperta – e o leitor, mais encantado com sua fibra. Kehinde/Luísa narra já velha, de um ponto fixo no futuro, e em primeira pessoa. Assim, sua narrativa é uniforme justamente porque narrada do ápice do amadurecimento. Só tem um porém. Depois que nasce o segundo filho, Omotunde, Kehinde começa a se dirigir a ele diretamente por você, alternando com a terceira pessoa usada desde o começo do livro. Há coisas como “...meu novo filho chorou” e “seu pai queria fazer de você um doutor” no mesmo parágrafo. Isso dá a impressão de que a velha Kehinde não tem lá muita concentração, e não parece ter sido intencional.

Apesar de episódios que podem ser vistos como fortes, não há grandes momentos de sentimentalismo ou autopiedade - nem de seu oposto, tédio ou cinismo - em Um defeito de cor. Se o leitor quiser senti-los por Kehinde, ele que sinta. A sensibilidade da (ótima) personagem não é a nossa: não é a do leitor nem provavelmente a da autora. Mais um ponto positivo.

Outro romance que trabalha bem a mitologia africana, inclusive usando o tema da ibêji morta, é A menina Ícaro, da nigeriana radicada em Londres Helen Oyeyemi. Significativamente, é comparado a este seu “gêmeo” que Defeito mostra mais seus defeitos: é explanatório demais, como se de vez em quando Kehinde/Luísa se destacasse do seu pano de fundo histórico e fosse bem lampeira até a lousa dar uma aulinha sobre cultura iorubá (ou geografia baiana, ou funcionamento de engenhos...). Em A menina Ícaro fica totalmente a critério do leitor conhecer mais sobre essa cultura – as explicações são propositalmente embaçadas. Mas a Wikipédia, a Barsa e a Brittanica existem para isso mesmo.

É muito mais difícil explicar por que um livro é bom do que por que outro não o é. É por isso que esta resenha vai ficando por aqui para se deter sobre os problemas de Leda.

Sinopse: Adolfo Lemoleme, jovem professor de literatura, começa a escrever a biografia de seu escritor e ídolo Bernardo Dopolobo. Em Leda, os ingredientes são os mais promissores: relação mestre/discípulo, mulheres, intrigas, vaidade intelectual, metalinguagem. Ainda por cima, os personagens caminham num terreno conhecido pelo autor, o acadêmico. Só que, de repente, dona Gigi, sogra de Dopolobo e cozinheira de mão cheia, solta uma análise literária destas em plena cozinha: “Eu vejo nessa história uma espécie de castigo contra esse país”. Ou seja, quando a ação sai desse ambiente, a linguagem se esquece de sair junto.

No atribulado começo há uma inútil inversão de pretensiosos adjetivos; depois, isto se dilui e, se havia um propósito no exagero inicial, não fica muito claro. De repente, há alguma conexão com uma das melhores coisas do livro: o retrato da galardeação intelectual que vai se acumulando sobre Dopolobo e, depois, sobre Lemoleme. Além das referências ao fiacre de Emma Bovary, evidenciando a ascendência de Flaubert sobre o personagem Dopolobo (e muito possivelmente sobre o autor), há a citação de livros inexistentes, um truque herdado de Borges.

Leda tem o valor de construir personagens muito coerentes. Acontece que eles são tão coerentes que só exibem o que se espera deles desde o princípio, emperrando um tanto a leitura. Aliás, os nomes dos personagens são todos sugestivos, coisa que angaria a antipatia de qualquer leitor bom em anagramas ou idiomas. Bernardo Dopolobo. Adolfo Lemoleme. Felícia Faca. Doutor Nochebuena. Professor Spielverderber. E por aí vai. O fato de haver trocas de ponto de vista não ajuda – logo ficamos sabendo o que Dopolobo e sua atual mulher pensam de Lemoleme, cortando o suspense pela raiz. Fosse diferente, Leda poderia ter frutificado numa boa história de detetive em disfarce de acadêmica (um Código Da Vinci menos medíocre).

O maior erro do livro está em descortinar a intimidade dos personagens sem com isso chegar a iluminar os desvãos mais sombrios de suas almas. Aliás, nem era preciso ir pelo caminho da seriedade. Se a proposta fosse, por exemplo, fazer pouco das intrigas e relações do mundinho literário – como fazem A estrela sobe (Marques Rebelo) e o recente Os atalhos de Samantha (Márcio Paschoal) com a indústria musical –, poderíamos nos comprazer nessa metalinguagem. Mas Leda caiu no meio-termo e caiu mal. Solenizou a relação mestre-discípulo e sua inversão, recorrendo a um quase humor que quase funciona. Não é que Roberto Pompeu de Toledo não saiba fazer isso. A história O pecado encoberto, parafraseada no epílogo de Leda, é excelente, cheia de ironia e movimento; se o livro todo fosse assim, ganhava de Defeito fácil, fácil. É que o autor procurou fazer algo de novo: uma jornada lítero-acadêmica, com metalinguagem e ironia, que não se escorasse nem no moralismo humorístico (Flaubert), nem na obsessão alfarrábica (Borges), e que resultasse em crítica e epifania. Fica esse mérito, mesmo que a tentativa tenha resultado frustrada.

Um defeito de cor dribla um grande número de páginas e algumas explicações e inconsistências narrativas para marcar um golaço no final: o de contar uma boa história. Embolou um pouco o meio de campo, mas jogou com alegria e garra, sem esquecer do placar. Leda entrou em campo promissor, depois se perdeu e só fez ficar mais lento no segundo tempo. Procurou inovar no esquema técnico e com isso deu seus chutes a gol, mas marcar, que é bom, quase nada. Lembram do “Quadrado Mágico” do Parreira? Pois é.


Bônus: Minha resenha da final da CLB 2007 Um defeito de cor (Ana Maria Gonçalves) versus Música perdida (Luiz Antonio de Assis Brasil)

Um defeito de cor e Música perdida têm suas similaridades: trajetórias de vida de brasileiros durante o século XIX. O primeiro tomou um ângulo politicamente agradável, empregando uma linguagem de “causo”; o segundo escolheu um viés erudito e uma forma de expressão elíptica. Cada um à sua maneira, ambos são bons livros; justo mesmo seria declarar empate. Nos pênaltis, a vitória foi de Música perdida, pela objetividade e pelas boas pensatas.


Eu teria que ter lido mais livros para dar uma opinião mais sólida, mas acho que Mãos de cavalo mereceria ter ido mais adiante na Copa. A final foi entre dois livros bons, mas não empolgantes; ficou um gosto de final de 94.