25.9.17

Twin Peaks: aconteceu de novo

Em 1990-91, Twin Peaks deixou pessoas no mundo todo grudadas à TV com dois ingredientes fortes: uma investigação de assassinato e muita bizarrice. Diz-se até que o então chefe de estado da URSS, Mikhail Gorbachev, teria perguntado ao (primeiro) presidente Bush norte-americano quem, afinal, havia matado Laura Palmer. Os produtores da série também pressionaram o diretor David Lynch a resolver logo o mistério. Quando o assassino foi revelado, no meio da segunda temporada, o público debandou.
Restaram os espectadores encantados pela atmosfera de cidadezinha do noroeste americano, com jovens nada inocentes mas muito bem agasalhados. Restaram também aqueles que se empenham ativamente na construção de teorias, que ligam os pontos, detetives do transcendental – à maneira do personagem Dale Cooper, agente do FBI cujo charme reside em não perceber que é galã. E o seriado acabou cancelado na segunda temporada, sem desfecho claro.
Na época, Twin Peaks foi uma série ímpar, cuja estranheza e complexidade abriram caminho para obras afins na TV – como Arquivo X e LOST –, e quem sabe tenha até contribuído para o boom das séries como mídia respeitável de 2005 para cá. Emissoras a cabo e, mais recentemente, os serviços de streaming, como Netflix e Hulu, investem pesado em histórias grandiosas, com um público fiel que debate cada episódio assim que ele sai.
Porém, esse público anda cada vez mais exigente. Séries cujos mistérios e revelações são julgados insatisfatórios ou descabidos podem ser abandonadas no meio – primeiro pelo público, depois pelos produtores.
Tudo precisa ser explicado. Tudo precisa ser mostrado. Mas não cedo (ou tarde) demais, nem claramente (ou obscuramente) demais, senão o público perde o interesse, e a série para de dar dinheiro.

“Eu não vim para explicar...”

 Essas expectativas impossíveis têm deturpado o espírito de algumas das séries mais célebres, como Game of Thrones, cuja temporada mais recente (pule o resto do parágrafo se ainda não assistiu) não matou ninguém importante, resumiu jornadas longas e perigosas por um mundo medieval a partida-e-chegada (no mesmo episódio!) e foi, em suma, acusada de ter feito de tudo para satisfazer os fãs.
Quando Mark Frost e David Lynch anunciaram, em 2014, que preparavam uma terceira temporada de Twin Peaks, o frisson foi grande. Havia uma chance de que o final inexplicado da segunda temporada, com o mocinho Dale Cooper aparentemente possuído, fosse ganhar a tão sonhada resolução. Ou, então, de que novamente a série abalaria as estruturas do que se entende por TV, mesmo numa época de bufê mais variado. Mas logo ficou claro que David Lynch não vinha para explicar, e sim para confundir.
No começo da nova temporada de Twin Peaks, o público esperava o retorno de seus personagens prediletos e que enfim se desse jeito nas inúmeras pontas soltas. Em vez disso, novos personagens e tramas foram se esparramando, tentaculares, em todas as direções. Muitos espectadores, de novo, perderam o interesse. Assim como na série de 25 anos atrás, recorreu-se a certos lugares-comuns televisivos: duplos malvados, historietas românticas, mulheres fatais, gângsteres de terno – mas em se tratando de Lynch, nunca eram realmente “comuns”. Eis que, no penúltimo episódio, após arrematar algumas tramas e agradar um pouco os fãs, Lynch embarca no tropo da viagem no tempo. O agente Cooper resgata Laura Palmer antes que ela possa ser morta e a leva para outra realidade. Afinal, desfazer a suposta confusão “original” resolve tudo – inclusive o excesso de tramas. Quando enfim, 25 anos depois, assistimos o desfecho, seu significado não é nada óbvio.
No livro A história secreta de Twin Peaks, lançado por Mark Frost em 2016, há algumas pistas extras. O livro é apresentado como um dossiê comentado por uma agente do FBI, juntando personagens e documentos históricos reais e ficcionais. Um dos personagens reais de A história secreta é Jack Parsons, especialista em foguetes e praticante de magia thelêmica que, nos anos 1940, foi procurado pela atriz Marjorie Cameron após um ritual para invocar a deusa Babalon. No seriado, a personagem Diane aparece caracterizada tal e qual Marjorie em uma de suas aparições mais famosas, de peruca ruiva e negligée florido, e faz sexo com Cooper no mundo paralelo do último episódio – será uma espécie de sexo mágico?
A principal pista oferecida pelo livro, no entanto, é a declaração inicial do Arquivista, a pessoa que montou o dossiê, sobre o mistério como o ingrediente mais essencial à vida. A antipatia de Lynch por respostas claras explica e define o formato do livro: tramas espiralantes sobre conspirações que nunca se resolvem, mas são inexplicavelmente satisfatórias.

Apertando o reset

No mundo para que Cooper levou Laura no último episódio, nem bem é 1989, nem 2017. Laura, 25 anos mais velha, confusa, não se lembra de sua vida pregressa, e acha que seu nome é Carrie. Mas é um mundo muito parecido com o nosso, onde a casa em que foi filmada a série é habitada pela verdadeira proprietária, que desconhece qualquer família Palmer. Ao entrarem na suposta “Twin Peaks”, não vemos a icônica placa da cidade (fictícia). Quando Cooper questiona a linha do tempo, o véu daquela realidade se rompe, a voz da mãe de Laura grita seu nome dentro da casa, e Carrie/Laura se lembra de tudo, soltando um grito primal. E a tela escurece. É o nosso mundo que é uma espécie de inferno, e ele acaba.
Brotaram, já no dia seguinte, diversas teorias de fãs que apontam para esse final como uma armadilha para prender ou eliminar as entidades sobrenaturais maléficas que torturaram a pobre Laura e a cidadezinha inteira, efetivamente resolvendo tudo. Mas quem assistiu na hora se sentiu absolutamente encafifado e talvez até traído.

Ao que tudo indica, o final ambíguo passado em nossa realidade é um espelho voltado para nós, a audiência, que em grande parte espera tudo mastigado e ao mesmo tempo surpreendente, sem investir nem um pouco de tutano em troca. No entanto, a era do fã-clube globalizado pode significar demandas impossíveis, mas também uma força-tarefa pronta a investigar uma obra e, mais do que isso, comungar em volta dela. Intuindo isso, David Lynch pode ter conseguido o impossível: fazer um revival satisfatório para ele e para nós, ao mesmo tempo em que foi crítico a certas seções mimadas do público que querem tudo, senão dão chilique.