24.3.11

servidão voluntária

Em 2010, decidi arrumar um emprego. Sim, necessidade financeira, mas eu tinha perspectivas de dinheiro para breve; só que pela primeira vez eu sentia vontade de arrumar um emprego, em vez de arranjar "algo temporário que desse algum dinheiro", como antes.
Eu estava numa época da minha vida que parecia que tudo ia dar certo. Eu tinha um livro promissor para desenvolver e uma bolsa saindo para ele (o dinheiro de que falei). Mas eu escrevia/planejava uma ou duas horas por dia. O resto do tempo eu me via tomada por pensamentos obsessivos que se acumulavam sem quê nem por quê, o dia inteiro rodopiando na minha cabeça, e às vezes não deixavam nem mesmo que eu fizesse o que tinha para fazer (escrever, comer, viver). Também tinha o fato de eu ter me recém-formado em produção editorial sem ter assinado carteira nessa profissão (nem em outra). E a já famosa degradação de habilidades sociais, que em mim é forte, rápida e embaraçosa.
A verdade é que eu estava meio desconectada da humanidade, passando tanto tempo sozinha em casa. Ok. Verdade verdadeira agora: eu sempre fui meio desconectada da humanidade, e as experiências nas poucas vezes em que tinha estendido a mão foram negativas, levando-me a encontrar prazer em estar na torre de marfim. Ou nem em estar na torre de marfim: em estar comigo mesma.
Muitas pessoas que passam muito tempo sozinhas desistem logo no começo porque são uma autocompanhia insuportável. Começando cedo, eu ainda não era; e logo aprendi a evitar ser. Descobri que dá pra você podar seus pensamentos. Você não precisa dar crédito a eles só porque eles vieram de você. Dizer "eu rejeito isso", mesmo que tenha vindo de dentro de mim, é uma babaquice necessária para se tornar uma pessoa melhor, o que se reflete também (claro) na minha opinião sobre educação de crianças, como podem ler nesse post.
Cabeça vazia, oficina do diabo, pensei; se não dá pra ocupar o cérebro com o que devo ocupá-lo, então que tal um belo bode na sala pra você ver o que é bom?
E arrumei o dito emprego. Um de 9h45 por dia, para fazer algo de que eu gostava, cheio de pessoas interessantes, algumas das quais viraram minhas amigas do peito. Mas tinha que chegar lá de ônibus, acordar todo dia no mesmo horário, dormir todo dia no mesmo horário, comer aquela comida e passar por aqueles ordálios trabalhistas por que sempre se passa. Depois que voltasse pra casa, às vezes ainda havia ir à academia ou fazer supermercado - ambos lotados, porque todo mundo só pode ir depois do trabalho - e sempre o jantar.
Também tem o fato de trabalhar ser muito caro e... trabalhoso. Sempre ouvi e li relatos disso, mas ano passado vivi na pele. Além de todos os encargos trabalhistas planejando sua vida por você (Estado paternalista comendo teu salário), há o tempo e o custo de transporte (e todo mundo viajando no mesmo horário, e no sistema de transportes pífio do Rio de Janeiro), a roupa certa (comprei 4 blusas iguais e 2 calças pretas, mas logo tive que comprar mais peças porque elas sujavam e gastavam bem mais rápido, ou davam um puta calor já na primavera) e a despesa com comida (lancha-se, porque trabalhar dá fome, e pede-se em casa, porque dificilmente se aguenta preparar comida depois de 9h45 no batente).
Fato é que pouco a pouco os pensamentos obsessivos foram se acalmando por pura exaustão. A energia antes reservada a eles servia agora à literatura, mesmo que fosse "dos outros", mesmo que às vezes eu nem curtisse o conteúdo. E, quando curtia, dava um gás maior na divulgação e me sentia ótima quando o livro conquistava um espaço maior, ou quando a edição saía bonita, sólida (mesmo que digital), (quase) sem erros, porque ajudei a pegá-los.
Depois que comecei a trabalhar, mesmo com toda aquela falta de tempo, eu escrevi muita coisa. E muita coisa boa. Teve um enorme surto inicial de escrita que me impressionou; depois eu escrevia muito semana sim, semana não. Parecia que as novas experiências enxurravam coisas meio emperradas, antigas, canalizando-as para a ponta dos dedos.
O que atrai muita gente para a profissão de escritor é uma suposta autorização pra não fazer nada o dia todo. (Fazer nada incluiria ler muito e escrever parcimoniosamente, além de traçar os/as fãs e colegas mais jeitosos/as.) Digo que todo esse papo de morte do autor e fim do sujeito fizeram um bocado de sentido depois da minha incursão celetista. Olha, o paraíso é insuportável. Uma vez que você chega nele, não precisa nem te contarem: a princesa está em outro castelo.
Porque saí do emprego? Bem, eu disse que o celetismo era um bode-na-sala, e como todo bode-na-sala, ele teve que sair em algum momento. Dei-lhe um tapinha nos quartos e despachei ele pro deserto. Nada pessoal. Saí curtindo muito o trabalho, mas a cada dia o horário do emprego se tornava mais difícil de cumprir. O dispositivo estava vencido. Minha doença mental estava sob controle.
Tive outras doenças ano passado também, físicas e desagradáveis, e, embora não acredite que toda doença é psicossomática (hohoho, Löis Lancaster...), essas também passaram. Confirmei que minha cabeça estava em desordem por ter passado tempo demais consigo mesma sem alimentação externa. E a qualidade da alimentação externa com que entrei em contato no trabalho foi tão alta que houve, olha só, reciprocidade. Eu gostei tanto das pessoas quanto elas de mim, eu fiz tão bem a elas quanto elas a mim. Uma sensação difícil e esparsa na minha vida até então.
Estar sozinha pra mim sempre foi o normal. Sou filha única, sempre morei em prédios sem playground e com poucas crianças. Me estranhava com a maioria das da escola. Socializava mais com os primos, quase todos meninos. Decidir trabalhar em casa, escrevendo, só deu continuidade a isso. Enxerguei esses anos um monte de coisas pelo mero fato de estar prestando atenção em vez de socializando; mas o preço dos insights induzidos pelo isolamento foi salgado. Pelo menos, quando entrei em contato aberto com outras pessoas - precisando delas, é a verdade - eu tinha algo a dar a elas. De um jeito que vai muito além de sexo, troca de favores ou coisas assim. Eu colocava benesses na frente das pessoas com um "use isso, por favor" estampado na cara - eu precisava ver meus caminhos de autodescobrimento seguindo seus caminhos, em vez de brincando de PacMan dentro da minha cabeça.
Eu também cheguei num ponto tal em que o processamento em segundo plano não estava mais bastando à escrita. Não estava dando vazão. Eu precisava voltar ao esquema full time - agora, com trocas frequentes com a humanidade. Vamos ver como isso anda.