14.3.10

Inteligível

Quantas vezes não ouço gente me dizendo: ahn, ele(a) é pobre, não teve as chances que você teve, deixe ele(a) fazer um serviço ruinzinho/marromenos. Ouço gente falando isso com relação a profissões as mais diversas, de revisores a eletricistas. Eu penso: e os pobres ou ricos ou remediados que são bons no que fazem? Devo tirar a chance deles de se destacarem, mostrarem serviço e ganharem dinheiro fingindo que os ruins são bons? Eu hein.
Eu gosto de gente boa no que faz. Minha faxineira é muito boa faxineira. Meu pedreiro é muito bom pedreiro. Eu os recomendo pra todo mundo. O que acontece, no mais das vezes, é que eles recebem serviço demais e acabam subindo a taxa que cobram ou não aceitando serviços. Eu pago - porque não suporto incompetência.
Meu pedreiro é inconformado com o tamanho da minha pia, que parece um bebedouro de pássaro. Ele já me perguntou algumas vezes porque eu não pus uma pia maior. Ontem resolvi responder sucintamente:
- Jogos de poder com a minha mãe.
Pronto. Até por já ter trabalhado para a minha mãe, ele entendeu na hora e riu. Vendo que tinha sido entendida, desenvolvi mais um pouco, descrevi a cena para ele - minha mãe na loja dizendo que estava pagando a reforma, então ia me comprar ou uma cuba quadrada ou aquelas que ficam para fora do mármore, que eu acho horrorosas; eu insistindo numa pia normal, oval; e no fim, por birra, ela me comprando uma louça de pia do tamanho e formato de meio Júpiter de sistema solar ginasial.
Ah, hoje em dia ela vem aqui e reclama da minha pia pequena. Fim.
Pelo menos meu pedreiro riu a valer e elogiou expressamente o "jogos de poder". E terminou seu serviço.
Em suma, foi um bom momento, fiquei feliz em ser compreendida.
Eu fico feliz com pequenas coisas, mas coisas que são danadas de difíceis de conseguir.

11.3.10

Maldito comentarista anônimo

Já quando foi lançado, em 1605, o primeiro Dom Quixote foi um tremendo sucesso. Esgotou dez edições em castelhano. Seus personagens apareceram em bailes de máscaras já no ano seguinte. Foi traduzido rapidamente para inglês e espanhol - e só não o foi para o português porque, naquela época, a Ibéria era praticamente bilíngue. Os portugueses liam castelhano numa boa*.
Cervantes deixou o final do primeiro Quixote em aberto, à moda das franquias cinematográficas atuais. Com o sucesso, Cervantes começou a escrever uma continuação no passo dele. Acontece que, antes de sair o segundo volume do Quixote, saiu uma suposta continuação, de má qualidade, escrita por um tal de Avellaneda - que, ainda por cima, era um pseudônimo.
Dá para imaginar que Cervantes tenha ficado queimado com isso. O que ele fez? Tentou descobrir a verdadeira identidade do sujeito? Processou o fidaputa para retirar aquilo de circulação? Moveu uma campanha de difamação pública do canalha?
Não. Ele resolveu inserir aquilo na história.
No segundo volume, Dom Quixote fica sabendo que andava circulando um livro contando suas aventuras (o primeiro volume, por Cervantes), e ainda um outro que contava "tudo errado" (o de Avellaneda).
Gênio que era, Cervantes bolou uma solução perfeita para o problema do direito autoral - não a pirataria, mas o problema do "dono da ideia": mostrar que você é muito melhor e por isso é o legítimo titereiro da ideia. E, se não inventou a metalinguagem, pelo menos a usou de forma brilhante, no melhor estilo sua-inveja-faz-a-minha-fama. E isso em 1615!

As informações desse post vieram das edições da Editora 34, volume um e volume dois. Isso é o que a orelha diz, e o prefácio. Estou começando o segundo volume agora - avidamente, é claro.

*A versão portuguesa só veio em 1794, quase duzentos anos depois, com o fim desse bilinguismo.

2.3.10

As pessoas não sabem

Se você está envolvido com produção editorial e tradução, como eu, já deve ter ouvido falar do blog da Denise Bottman. É um blog que coteja e denuncia plágios maquiados, nos quais se muda uma pequena porção das palavras para fingir que houve uma tradução nova e não pagar os devidos direitos ao tradutor ou a seus herdeiros.
Pois bem, duas das editoras moveram inacreditáveis processos contra Denise por esta ter denunciado crimes. Foi lançado um manifesto online contra isso: assine-o, se puder.

Outro dia uma amiga estava falando da coleção de bolso da Martin Claret, e de como, apesar de feios, os livros eram baratinhos; quando mencionei que alguns eram fruto de plágio ela quase caiu para trás. Nunca tinha ouvido falar do imbróglio. Aproveitei para indicar o Não gosto de plágio. Minha amiga, indignada, abjurou os livros da editora.
As pessoas não sabem dos casos de plágio disfarçado e continuam comprando livros das editoras "espertas". Quando ficam sabendo, a reação é indignação e rejeição aos produtos denunciados. Então conte para eles. Promova o blog da Denise. É um bem que você faz.

Se isso te faz ferver o sangue, outra prática afim em que é bom prestar atenção: sebos que recebem livros roubados de bibliotecas. Não posso imaginar sacanagem maior.
Quando estiver folheando livros a esmo e encontrar algum com carimbo de instituição (e frontispício arrancado: suspeitíssimo), avise o responsável e ouça bem a resposta dele. Isso aconteceu comigo: o sujeito disse que recebeu um "lote muito grande" de livros e não pôde verificar um por um. Ou seja, a desculpa dele foi preguiça e ignorância. Para mim, é óbvio que o dono de sebo tem que verificar os livros que chegam um a um, e os mais atentos (e honestos) adotam práticas ainda mais rigorosas* para evitar receber mercadoria roubada. Não comprei mais naquele sebo. Se eu lembrasse o nome dele, eu diria, mas a verdade é que faz muito tempo e, não lembrando bem, não quero acusar em falso.
Informação é um negócio sério. Quanto mais disseminada, mais fica difícil a pessoa se fazer de boba ("mas eu não sabia...").


*Acesso para assinantes da Folha de SP ou do UOL