28.4.07

Meta-se com a minha vida, por favor

Toda vez que vejo um massacre desses eu fico pensando: quando é que vou ser pega? Mas não, nada.
Na época em que escrevi No shopping tinha acabado de acontecer o massacre de Columbine. Eu achava (e acho) esse negócio de shooting spree uma burrice. Vocês só estão dando a eles o primeiro argumento decente (porque não existem argumentos) para destratar e desprezar o diferente, torná-lo um verdadeiro outcast... eu pensava, como outcast que era.
Onde fiz o Ensino Médio, havia um kit de procedimentos: determinadas festas, academias e roupas; você era vôlei ou handebol, cibersexo ou namorado firme, espanhol ou francês, esnobe ou catolicamente caridosa, maconha ou ecstasy. Você tinha algumas "tipografias" para compor a sua personalidade visível, e todas deveriam obrigatoriamente se prestar a leituras canônicas e ser agrupáveis em panelinhas. Aí cheguei eu, que impensavelmente tinha passado pela quarta série sem ser pasteurizada (como, também não sei até hoje). Eu trazia uma combinação inédita e desconcertante, além de algumas tipografias novas em que ninguém tinha pensado antes. Eu era gatinha, mas era contra "ficar"; gostava de ler, mas só era boa aluna em Português (e acintosamente razoável em Educação Física); era evangélica praticante num colégio católico; gostava de raves, mas não usava drogas; e não usava brincos, mas quatro anéis. Imperdoável a confusão que causei em suas cabecinhas.
Lembro de uma patricinha me admitindo (longe das outras, é claro) numa tentativa de me convencer a abraçar o Lado Negro: eu era que nem você, mas uma hora a gente muda. Se eu me importasse, eu teria arriscado um: e você está feliz assim ou apenas bem-encaixada? Mas apenas virei a cara, ou sei lá.
A orientadora me perseguia pelo corredor, aflita por criar alguma intimidade. Ela repetia a mesma frase forçada toda vez que me via. Não era "tudo bem" nem "como vai". Era: "Simone! Quando é que você vai trazer as famosas empadinhas da sua avó para eu provar?" É aquela coisa: dizer que era preciso se encaixar, quando seu próprio encaixamento depunha contra as virtudes de, enfim.
Desde a sétima série, eu passava as minhas tardes jogando Duke Nukem, Heretic e Tomb Raider. Só no segundo ano, quando decidi pôr minha vingança em prática, é que comecei a freqüentar mais a excelente biblioteca do colégio. Artilharia pesada: Dostoiévski. Kafka. Nabokov. Lispector. Gullar. Guns... lots of guns.
E fui construindo o pesadelo em que eu vivia. Um pesadelo coletivo: todo mundo deitado sonhando junto. E é ruim para todo mundo em algum momento. Isso é No shopping.

O melhor de tudo é que não foi nem principalmente por vingança: isso foi um objetivo colateral. Eu queria ser escritora desde os 7 anos. Só foi esse o enredo porque percebi que a história de como uma geração é ferrada da cabeça é sempre uma grande história, ainda mais se bem contada.
E de bonus combo super special: o olhar de ódio disfarçado das patricinhas. Afinal, eu não só tinha provado que elas estavam erradas - que, sim, era possível não ser um clone e ter sucesso na vida -, como também tinha "aparecido na TV", o que não só não era meu sonho como era o sonho de todas elas...
Quando recebi a plaquinha comemorativa por ter publicado No shopping, e li que ela dizia: dos seus professores, colegas e amigos , pensei: ótimo. estão com medo de mim. Não trouxe ela para a casa nova, evidentemente.

Tudo isso é para dizer que quando vejo as pessoas publicando a autobiografia antes dos 25 anos eu tenho uma reação parecida com quando vejo um cara to go postal: epa, que idéia é essa de sair atirando tudo isso em cima de mim!?
Pra mim, a expressão é superior ao exibicionismo. Você se inspirar na sua experiência pessoal é diferente de reproduzir a sua experiência pessoal, em geral, tão pobrinha. Só respeito autobiografia se for bem escrita e mentir bastante, mas parece que as pessoas estão viciadas nisso de falar a verdade. Ah, se algum político escrevesse bem...

27.4.07

Três palavras que, num texto literário atual, demonstram inquestionavelmente que seu escritor é um chato:

seminal
minh'alma
(o) inefável

26.4.07

Parece uma espécie de castigo de escola: rubrique seu nome em todas as páginas do roteiro e assine na última. É também uma espécie de teste de fé, pois só um autor que ame mesmo sua obra vai querer enfrentar esse pelourinho. Aliás, um plagiador não teria este saco: foram oitenta e duas rubricas, assinatura, imprimir o boleto, tirar xerox da identidade, CPF e comprovante de residência, comprar pasta polionda, enfrentar fila no Banco do Brasil, esperar a atendente que tinha ido no banheiro (se maquiar. Demorou 30 minutos cravados e não voltou muito melhor) e daí os carimbos, as autenticações e grampeamentos. A partir de hoje você já pode divulgar a sua obra, disse-me ela.

Então estou divulgando. Finalmente concluí o roteiro do meu livro, A feia noite, e estou abrindo oficialmente a temporada de caça a diretores. Estou também torcendo pelo sucesso avassalador das adaptações cinematográficas dos novos autores (Daniel Galera e Clarah Averbuck), porque aí entra na moda e fica fácil de conseguir financiamento.

O roteiro passou por várias fases até encontrar seu caminho. Já houve uma versão mais inventiva, mas também cara demais para ser viável no Brasil. Adequei, agora está mais realista em termos econômicos.

Depois que eu entendi uma certa nuance da adaptação, ficou fácil. No livro eu comecei com uma idéia básica, fui escrevendo cenas-chave e, nelas, identificando referências literárias que usava como bússola para as demais cenas. No roteiro, retornei à idéia básica e usei referências audiovisuais. (Ou seja: o livro parece um livro e o roteiro parece um filme). Eu ia escrevendo e listando as referências. Confira:

Audition, Bonequinha de Luxo, Encaixotando Helena, Clube da Luta, Beleza Americana, Mary Poppins, Gilmore Girls, Charlie Kaufman, Pen-ek Ratanaruang, Darren Aronofsky, Quentin Tarantino, Asia Argento, Sofia Coppola, Rogério Sganzerla, Almodóvar, Nelson Rodrigues, Glauber Rocha

Do Tarantino para a frente são referências menores. Quer dizer, diretores com quem não concordo totalmente. Quando lembro daquelas falas proto-emo de Terra em Transe - "se ao menos pudesse fazer uma poesia que falasse de coisas mais sérias..." - e do jeito como eram over-the-top, me dá náuseas. E Sofia Coppola, tão nhém-nhém-nhém...

23.4.07

Agora estreou o filme do jovem Hannibal, o que me lembra essa minha história aqui. Mas tenho outras, mais light. Por exemplo, hoje estava pensando numa vez em que surpreendi duas meninas dizendo que uma delas (a Luiza) ia fazer um book. Eu imediatamente me interessei: você vai fazer um book, Luiza? Eu também. Quer dizer, é meu sonho...
Primeiro, elas estranharam. Quer dizer, eu não era incrivelmente feia, mas também não era padrão-paquita como a Luiza, loira de cabelos longos. Mas... vá lá, devem ter pensado. Me ofereceram o telefone do fotógrafo.
Fotógrafo? Eu fiquei sem entender nada. Eu esperava que me oferecessem o telefone do editor...
Até se desfazer a confusão... não, não zombaram de mim. Elas eram presas da cultura da moda, ou seja, elegância. E, quanto menos competição, melhor.
Mas você vê o que é a especialização precoce (ou: é de pequenino que se torce o pepino).

21.4.07

Esses aviões correndo sobre a enseada de Botafogo me acenderam aqui um pequeno déjà-vu de Londres na Segunda Guerra Mundial.

19.4.07

The UnDiva

Nada de beicinhos estúpidos com fundo de azulejo de banheiro. Nada de olharezinhos lânguidos para a câmera na ponta do bracinho esticado. Nada de fotinhos de camisola sem sutiã. Quem vai me dar Gold?
Oh, e destrancar o cofre das inimagináveis compensações de um séquito de fãs masculinos? E os emails de desconhecidos terminados por "Um Grande Beijo"? E os presentes da lista da Cultura chegando infalíveis um após o outro?
Oh, ser uma estampa de Eucalol com cérebro!

17.4.07

Pois é, e não é que a rua Voluntários da Pátria foi votada um dos lugares mais feios do Rio? (Na revista de domingo do jornal O Globo.) A Voluntários é feia por ser muito "descontínua", "despadronizada" ou alguma baboseira assim. Afinal, as coisas têm que ser uniformemente bonitas para ser bonitas. Nivelem as favelas com um trator. Aproveitem e aplainem os morros também. Aí é só pegar a terra para jogar na orla, fabricando mais praias, que são, afinal, um lugar freqüentado por "gente bonita".
(Tudo mentira, tá?)
É claro que não se pode esperar sutileza das pessoas consultadas pela revista do Globo. Moram todas no Leblon ou em Ipanema e não põem muito a cara para fora de seus bairros-bunker. Aliás, mea culpa: quem manda eu me meter a ler aquela revista? Sempre me aborreço com a falta de profundidade e graça daquilo. Até os cartuns me irritam. Quando lá d'O Globo me perguntaram se eu queria renovar a assinatura, aceitei, mas mandei um email falando tudo isso para eles. Não recebi resposta. (Por que será?)

Enfim, queria falar era de Botafogo. Botafogo possui enxertos de tudo o que há na cidade. Você tem que pensar nele como num parque da Disney. Você não vai nas xícaras giratórias quando está com adolescentes nem na montanha russa de oito loops se está com suas tias velhas.
Dito isso, passo à minha classificação. Começando pela Voluntários da Pátria e arredores:
- Little Lapa: já encostando no Humaitá, temos a Cobal de Botafogo, com bares animados e chorinho ao vivo. Ela fica de frente para a Visconde de Caravelas, onde ficam uns restaurantes baratos, como o Plebeu. A pé, dá para alcançar as boates Casa da Matriz e Pista 3. Só falta uma casa de sinuca...
- Little Alfândega (ou 25 de Março, para os paulistas): um trecho da Voluntários entre a rua São João Batista e a Real Grandeza que tem distribuidoras de biscoito, lanchonetes que servem pratos-feitos de R$3,20, malharias, lojas de roupa íntima e a PlastRei, que vende tudo que já foi feito de matéria plástica sobre a face da terra.
- Little Copacabana: o trecho a seguir da Voluntários (entre São João Batista e Guilhermina Guinle) tem a aparência da Copacabana feia, com direito a loja de tintas, prédios colados uns nos outros, uma galeria, duas óticas, uma C&A, supermercado, uma padaria enorme e um bingo com um luminoso bem brega.
(Entre a Guilhermina Guinle e a Dezenove de Fevereiro, a Voluntários tem cara de Botafogo mesmo.)
- Little Leblon: o trecho antes da praia que tem vários barezinhos da moda, tipo a Drinkeria Maldita, os cinemas Estação e Espaço, e... a praia.

Mas não é só. Botafogo também é muitos outros lugares, por exemplo:
- Little Irajá: a rua Pinheiro Guimarães e a General Cornélio de Barros.
- Little Kindergarden: a rua Barão de Lucena às cinco e meia da tarde.
- Little Balança-mas-não-cai: os prédios cabeções-de-porco da Praia de Botafogo.
don't spend it all in one place

Já era.
Estava com seis livros importados na minha mira há muito tempo. Comparei direitinho as opções, fechei a compra, paguei, e agora eles serão meus. Só meus.
Turn of the screw - Henry James
On beauty - Zadie Smith
Franny & Zooey - J.D. Salinger
The Chinese have a word for it - Boyé Lafayette De Mente (demente?)
The handmaid's tale - Margaret Atwood (a tradução brasileira é da Rocco, precisa dizer mais?)
Never let me go - Kazuo Ishiguro
Há muitas razões para comprar um livro importado ao invés do nacional. Algumas delas:
- é mais barato (mesmo com um frete exorbitante)
- não paga imposto na alfândega
- há traduções ruins
- há traduções boas esgotadas
- não há tradução nenhuma
- nunca haverá tradução nenhuma
- nunca haverá tradução nenhuma que preste
- a edição estrangeira é freqüentemente mais bem-cuidada
- preciso mesmo praticar meus idiomas
Por fim, parece que as coisas de que gosto são mais publicadas, lidas e reimpressas lá fora, e, portanto, sempre mais baratas e disponíveis também. Fazer o quê se não estou interessada em ler Meu pescoço é um horror...
Whatever happened to Xuxa

Ela anda escrevendo mala-direta por email, pelo jeito. Recebi hoje um spam com este assunto: "Quero ser senxual".

10.4.07

little hell (with voices)



Se o inferno são os outros, os tridentes são as câmeras.
Este vídeo não foi projetado para isso, mas é melhor que muito curta por aí em diálogos, captação de som, timing, coordenação com o fundo musical e, principalmente, efeitos especiais. Repare no que os jogos de luz fazem à menina próxima à câmera em torno de 20 segundos.
Eu não estou lá, só em espírito.
mais oops aqui
Os jornais não dão quando alguém tenta se suicidar (se você é candidato ao suicídio em público, já percebeu este pormenor). Isso se aprende no Jornalismo. Olhei hoje o jornal inteirinho e nenhuma menção à suicida que cortou o fluxo da linha do metrô a partir da Cinelândia - sentido Zona Sul. Todas aquelas pessoas precisando ser escoadas e vagando sem rumo pelo centro. Sem saber se pegavam um ônibus ou um táxi ou paravam para comer um sanduíche de mortadela.
Eu comprei um mangá daqueles bem violentos e tomei um ônibus de linha obscura, com ar-condicionado, e fui lendo na janela bem devagar para não dar tontura (e para degustar melhor). Me lembrou o meu Conto Japonês em algumas coisas, o que não é de se admirar. Tanto a mulher obesa quanto o terno que sentaram do meu lado reagiram mal ao meu material de leitura.
(Agora passa um filme na Band com a Rachel Weisz cujas palavras chaves no imdb são: Obscene Finger Gesture / Aquarium / Rough Sex / Bicycle Accident / Beach.)

9.4.07

"Os editores querem que o indivíduo traduza para o padrão médio da língua, mas como se pode fazer isso quando o original rompe justo com esse padrão?
Isso me aconteceu exatamente com as traduções de Dostoiévski que fiz para a José Olympio, na década de 60. Uma vez, o revisor me chamou, e a revisão lá era muito cuidada, mas muito respeitosa, em relação ao que eles consideravam a tradição da língua; o revisor me chamou por causa de um conto em que aparecia a expressão "cor hemorroidal". Ele disse: "Isso não existe em português". Eu respondi: "Como não existe? Cor existe, hemorroidal existe, então porque não posso juntar as duas palavras?" Aí eu expliquei que a expressão tampouco existia em russo, que tinha sido criada especialmente para aquela obra. Por que eu não podia cometer em português a ousadia que Nicolai Gogol cometera em "O Capote" e que fora resgatado por Dostoievski em russo, por que eu tinha que ser sempre médio, medíocre? Isso acontece com muita freqüência."
- Boris Schnaiderman, tradutor, em entrevista a Lia Wyler no jornal Pé da Letra em julho/93, grifos meus

5.4.07

"Ancelmo e Murilo também falam de mulheres, como se todas olhassem para eles e, principalmente, como se cada uma delas os desejassem selvagemente. Não é o caso, nunca foi." - Hermés, no Superego, em 27/03
Quando os lugares eram marcados, na sétima série, eu fui colocada perto dos meninos mais arruaceiros, no fundo. Não sei o que a professora pretendia com aquilo. Talvez que eu exercesse alguma boa influência sobre eles - e não que eu ouvisse eles falando em pregar a professora parecida com a Luana Piovani num crucifixo e comê-la de cabeça para baixo (patente influência do metal). Acontece que assim fiquei sabendo demais sobre os homens cedo demais.
Não é de propósito, mas é útil. Eu acabo ficando sempre em posições que me permitem ouvir o que os homens falam entre si, sem qualquer tipo de censura. E que tristeza que é. Outro dia fiquei próxima a um grupo de três quarentões numa dessas mesas compridas de restaurante a quilo. Eu fui acompanhando a conversa e lembrei logo da sétima série. Primeiro falaram em todas as mulheres que, obviamente, davam um mole desesperado para eles, e quais, dentre essas, gostariam de comer. (Aqui as estagiárias são muito citadas.) Aí o gordinho baixinho e careca começou a "lamentar" o próprio excesso de fixação sexual. Os outros opinaram: isso é até doença, hein cara. E o gordinho careca baixinho: pareço até aquele ator... o Michael Douglas. Eu ri e eles perceberam. Fingi uma tossida. Olhei para o garfo.
As mulheres também não são muito melhores que isso. No vagão para mulheres do metrô, os assuntos de que mais falam são: gatinhos, BBB, celulares, magreza, compras e pessoas que as apunhalaram no trabalho. Apenas como referência, coloco aqui os assuntos de que falei com uma amiga que encontrei no vagão feminino outro dia: férias, viagens, mestrado, livros, carreira, magreza e restaurantes que prestam.