Meta-se com a minha vida, por favor
Toda vez que vejo um massacre desses eu fico pensando: quando é que vou ser pega? Mas não, nada.
Na época em que escrevi No shopping tinha acabado de acontecer o massacre de Columbine. Eu achava (e acho) esse negócio de shooting spree uma burrice. Vocês só estão dando a eles o primeiro argumento decente (porque não existem argumentos) para destratar e desprezar o diferente, torná-lo um verdadeiro outcast... eu pensava, como outcast que era.
Onde fiz o Ensino Médio, havia um kit de procedimentos: determinadas festas, academias e roupas; você era vôlei ou handebol, cibersexo ou namorado firme, espanhol ou francês, esnobe ou catolicamente caridosa, maconha ou ecstasy. Você tinha algumas "tipografias" para compor a sua personalidade visível, e todas deveriam obrigatoriamente se prestar a leituras canônicas e ser agrupáveis em panelinhas. Aí cheguei eu, que impensavelmente tinha passado pela quarta série sem ser pasteurizada (como, também não sei até hoje). Eu trazia uma combinação inédita e desconcertante, além de algumas tipografias novas em que ninguém tinha pensado antes. Eu era gatinha, mas era contra "ficar"; gostava de ler, mas só era boa aluna em Português (e acintosamente razoável em Educação Física); era evangélica praticante num colégio católico; gostava de raves, mas não usava drogas; e não usava brincos, mas quatro anéis. Imperdoável a confusão que causei em suas cabecinhas.
Lembro de uma patricinha me admitindo (longe das outras, é claro) numa tentativa de me convencer a abraçar o Lado Negro: eu era que nem você, mas uma hora a gente muda. Se eu me importasse, eu teria arriscado um: e você está feliz assim ou apenas bem-encaixada? Mas apenas virei a cara, ou sei lá.
A orientadora me perseguia pelo corredor, aflita por criar alguma intimidade. Ela repetia a mesma frase forçada toda vez que me via. Não era "tudo bem" nem "como vai". Era: "Simone! Quando é que você vai trazer as famosas empadinhas da sua avó para eu provar?" É aquela coisa: dizer que era preciso se encaixar, quando seu próprio encaixamento depunha contra as virtudes de, enfim.
Desde a sétima série, eu passava as minhas tardes jogando Duke Nukem, Heretic e Tomb Raider. Só no segundo ano, quando decidi pôr minha vingança em prática, é que comecei a freqüentar mais a excelente biblioteca do colégio. Artilharia pesada: Dostoiévski. Kafka. Nabokov. Lispector. Gullar. Guns... lots of guns.
E fui construindo o pesadelo em que eu vivia. Um pesadelo coletivo: todo mundo deitado sonhando junto. E é ruim para todo mundo em algum momento. Isso é No shopping.
O melhor de tudo é que não foi nem principalmente por vingança: isso foi um objetivo colateral. Eu queria ser escritora desde os 7 anos. Só foi esse o enredo porque percebi que a história de como uma geração é ferrada da cabeça é sempre uma grande história, ainda mais se bem contada.
E de bonus combo super special: o olhar de ódio disfarçado das patricinhas. Afinal, eu não só tinha provado que elas estavam erradas - que, sim, era possível não ser um clone e ter sucesso na vida -, como também tinha "aparecido na TV", o que não só não era meu sonho como era o sonho de todas elas...
Quando recebi a plaquinha comemorativa por ter publicado No shopping, e li que ela dizia: dos seus professores, colegas e amigos , pensei: ótimo. estão com medo de mim. Não trouxe ela para a casa nova, evidentemente.
Tudo isso é para dizer que quando vejo as pessoas publicando a autobiografia antes dos 25 anos eu tenho uma reação parecida com quando vejo um cara to go postal: epa, que idéia é essa de sair atirando tudo isso em cima de mim!?
Pra mim, a expressão é superior ao exibicionismo. Você se inspirar na sua experiência pessoal é diferente de reproduzir a sua experiência pessoal, em geral, tão pobrinha. Só respeito autobiografia se for bem escrita e mentir bastante, mas parece que as pessoas estão viciadas nisso de falar a verdade. Ah, se algum político escrevesse bem...