Em 1990-91, Twin Peaks deixou pessoas no mundo todo grudadas à TV com dois
ingredientes fortes: uma investigação de assassinato e muita bizarrice. Diz-se
até que o então chefe de estado da URSS, Mikhail Gorbachev, teria perguntado ao
(primeiro) presidente Bush norte-americano quem, afinal, havia matado Laura
Palmer. Os produtores da série também pressionaram o diretor David Lynch a
resolver logo o mistério. Quando o assassino foi revelado, no meio da segunda
temporada, o público debandou.
Restaram os espectadores encantados
pela atmosfera de cidadezinha do noroeste americano, com jovens nada inocentes
mas muito bem agasalhados. Restaram também aqueles que se empenham ativamente
na construção de teorias, que ligam os pontos, detetives do transcendental – à
maneira do personagem Dale Cooper, agente do FBI cujo charme reside em não perceber
que é galã. E o seriado acabou cancelado na segunda temporada, sem desfecho claro.
Na época, Twin Peaks foi uma série ímpar, cuja estranheza e complexidade abriram
caminho para obras afins na TV – como Arquivo
X e LOST –, e quem sabe tenha até
contribuído para o boom das séries como mídia respeitável de 2005 para cá.
Emissoras a cabo e, mais recentemente, os serviços de streaming, como Netflix e Hulu, investem pesado em histórias
grandiosas, com um público fiel que debate cada episódio assim que ele sai.
Porém, esse público anda cada vez
mais exigente. Séries cujos mistérios e revelações são julgados insatisfatórios
ou descabidos podem ser abandonadas no meio – primeiro pelo público, depois
pelos produtores.
Tudo precisa ser explicado. Tudo
precisa ser mostrado. Mas não cedo (ou tarde) demais, nem claramente (ou
obscuramente) demais, senão o público perde o interesse, e a série para de dar
dinheiro.
“Eu não vim para explicar...”
Essas expectativas
impossíveis têm deturpado o espírito de algumas das séries mais célebres, como Game of Thrones, cuja temporada mais
recente (pule o resto do parágrafo se ainda não assistiu) não matou ninguém
importante, resumiu jornadas longas e perigosas por um mundo medieval a
partida-e-chegada (no mesmo episódio!) e foi, em suma, acusada de ter feito de
tudo para satisfazer os fãs.
Quando Mark Frost e David Lynch
anunciaram, em 2014, que preparavam uma terceira temporada de Twin Peaks, o frisson foi grande. Havia
uma chance de que o final inexplicado da segunda temporada, com o mocinho Dale
Cooper aparentemente possuído, fosse ganhar a tão sonhada resolução. Ou, então,
de que novamente a série abalaria as estruturas do que se entende por TV, mesmo
numa época de bufê mais variado. Mas logo ficou claro que David Lynch não vinha
para explicar, e sim para confundir.
No começo da nova temporada de Twin Peaks, o público esperava o retorno
de seus personagens prediletos e que enfim se desse jeito nas inúmeras pontas
soltas. Em vez disso, novos personagens e tramas foram se esparramando,
tentaculares, em todas as direções. Muitos espectadores, de novo, perderam o
interesse. Assim como na série de 25 anos atrás, recorreu-se a certos
lugares-comuns televisivos: duplos malvados, historietas românticas, mulheres
fatais, gângsteres de terno – mas em se tratando de Lynch, nunca eram realmente
“comuns”. Eis que, no penúltimo episódio, após arrematar algumas tramas e
agradar um pouco os fãs, Lynch embarca no tropo da viagem no tempo. O agente Cooper
resgata Laura Palmer antes que ela possa ser morta e a leva para outra
realidade. Afinal, desfazer a suposta confusão “original” resolve tudo –
inclusive o excesso de tramas. Quando enfim, 25 anos depois, assistimos o
desfecho, seu significado não é nada óbvio.
No livro A história secreta de Twin Peaks, lançado por Mark Frost em 2016,
há algumas pistas extras. O livro é apresentado como um dossiê comentado por
uma agente do FBI, juntando personagens e documentos históricos reais e
ficcionais. Um dos personagens reais de A
história secreta é Jack Parsons, especialista em foguetes e praticante de
magia thelêmica que, nos anos 1940, foi procurado pela atriz Marjorie Cameron
após um ritual para invocar a deusa Babalon. No seriado, a personagem Diane
aparece caracterizada tal e qual Marjorie em uma de suas aparições mais
famosas, de peruca ruiva e negligée
florido, e faz sexo com Cooper no mundo paralelo do último episódio – será uma
espécie de sexo mágico?
A principal pista oferecida pelo
livro, no entanto, é a declaração inicial do Arquivista, a pessoa que montou o
dossiê, sobre o mistério como o ingrediente mais essencial à vida. A antipatia
de Lynch por respostas claras explica e define o formato do livro: tramas
espiralantes sobre conspirações que nunca se resolvem, mas são
inexplicavelmente satisfatórias.
Apertando o reset
No mundo para que Cooper levou
Laura no último episódio, nem bem é 1989, nem 2017. Laura, 25 anos mais velha,
confusa, não se lembra de sua vida pregressa, e acha que seu nome é Carrie. Mas
é um mundo muito parecido com o nosso, onde a casa em que foi filmada a série é
habitada pela verdadeira proprietária,
que desconhece qualquer família Palmer. Ao entrarem na suposta “Twin Peaks”,
não vemos a icônica placa da cidade (fictícia). Quando Cooper questiona a linha
do tempo, o véu daquela realidade se rompe, a voz da mãe de Laura grita seu
nome dentro da casa, e Carrie/Laura se lembra de tudo, soltando um grito
primal. E a tela escurece. É o nosso mundo que é uma espécie de inferno, e ele
acaba.
Brotaram, já no dia seguinte,
diversas teorias de fãs que apontam para esse final como uma armadilha para
prender ou eliminar as entidades sobrenaturais maléficas que torturaram a pobre
Laura e a cidadezinha inteira, efetivamente resolvendo
tudo. Mas quem assistiu na hora se sentiu absolutamente encafifado e talvez
até traído.
Ao que tudo indica, o final
ambíguo passado em nossa realidade é um espelho voltado para nós, a audiência, que
em grande parte espera tudo mastigado e ao mesmo tempo surpreendente, sem
investir nem um pouco de tutano em troca. No entanto, a era do fã-clube
globalizado pode significar demandas impossíveis, mas também uma força-tarefa
pronta a investigar uma obra e, mais do que isso, comungar em volta dela. Intuindo
isso, David Lynch pode ter conseguido o impossível: fazer um revival
satisfatório para ele e para nós, ao mesmo tempo em que foi crítico a certas
seções mimadas do público que querem tudo, senão dão chilique.