3.7.17

O ético, o estético e o empático: leitores pra quê?

Uma amiga me conta de um episódio de Sex & The City em que uma das mulheres está namorando um escritor. Ele lhe pede uma leitura crítica. Ela elogia a obra, mas diz que sua personagem principal feminina é implausível: uma nova-iorquina redatora de revista que usa scrunchies (frufrus de cabelo), algo datado desde os anos 80. Ele fica ofendidíssimo. Fim de caso.

Sensitivity readers, ou “leitores sensíveis”, têm sido adotados por editoras para se certificarem de que o autor não falou nenhuma merda muito grande sobre minorias. Para mim, se trata de um subtipo do leitor crítico ou parecerista, adotado por editoras e autores quando creem precisar de uma segunda opinião. Eu mesma já pedi a amigas que fossem leitoras beta do meu próximo romance, com duas protagonistas de ascendência indígena e negra. Isso pra mim faz parte da criação e sempre procuro. Creio que, quando você não tem a experiência direta – por mais que você esteja envolvida, cultive a empatia, pesquise ficção e teoria a respeito do tema –, sempre há um ponto cego. Quem não conhece romances com personagem feminina escritos por homem que fazem muita mulher chorar sangue ao lembrar que existem? Se esses homens tivessem pensado em submeter o romance a uma leitura crítica por uma mulher, talvez o desastre pudesse ter sido evitado... A questão é que muitos desses caras não querem isso – expor seu romance a uma crítica dessas, e ainda ter o trabalho de mudar o seu romance depois.

O medo de alguns escritores se revela ao abominarem leituras críticas de qualquer tipo, não apenas os leitores sensíveis. Tacham-na de censura e de pasteurização. Numa estranha mistura de insegurança com orgulho, evitam até editores que “mexem” no texto (?) e ficam ofendidos quando um editor ousa fazer uma sugestão. Ninguém pode tocar em sua obra sem sua autorização. Ele, aliás, não escreve pensando no leitor.

Então o problema pra mim não é a existência de sensitivity readers ou leitores beta ou editores, e sim a editora obrigar o escritor a obedecer a um tipo específico de parecer, desrespeitando a sua integridade artística. Aliás, a editora faz isso não por se preocupar de verdade com minorias, mas por motivos financeiros. Um livro boicotado não vende, uma edição recolhida não lucra, um processinho desagrada os acionistas e espanta investidores...

Mas, na real, as editoras brasileiras não obrigam ninguém a nada, gente. Aqui, editores são aconselhados a “pegar leve” com Fulano e, de qualquer modo, têm livros demais pra editar: não perca muito tempo com isso é a tônica. E ninguém gosta muito de encomendar parecer externo; desvaloriza a “prata da casa”. Quando há conselhos, eles são bem negociáveis: o autor pode explicar porque tomou aquela decisão artística (“o personagem é escroto mesmo!”) ou, em último caso, bater o pé e fazer questão (costuma funcionar). Então quem vê esse texto antes da publicação sem ser escritor e editor? No máximo, os amigos e namoradxs do escritor, antes de ele mandar à editora. Essas pessoas, evidentemente, não vão fazer nenhuma revisão radical.

Por mim, que deixem a pessoa escrever romance ruim.

Ética x estética

Outro problema reside na definição de ruim. Um livro imoral pode ser esteticamente ótimo (Justine), e um livro moralmente correto pode curar a insônia em apenas duas páginas (O feijão e o sonho). A boa ficção deve ir além do ético e do estético: não é um exemplo pra vida, nem um comentário direto sobre práticas existentes, ainda que use de elementos selecionados da realidade. Conforme sugere o teórico Wolfgang Iser, é na ficção que você tem a liberdade de entretecer imaginação e realidade para criar uma máquina que, na interação com o leitor, gera experiência estética e, depois, sentido. O autor e o leitor entram com seus respectivos repertórios de vivências e de tradição literária – e, muito importante, com suas imaginações; a leitura do texto põe em jogo esses elementos, trazendo algo de novo ao mundo.

No contexto atual de leitores sensíveis, muito se fala de uma “censura do politicamente correto”, que proibiria personagens antipáticos, homofóbicos, machistas, racistas, criminosos, ou então de uma tendência a querer transformar literatura em “auto-ajuda”. Como falei, essa “proibição” simplesmente não acontece no Brasil. Mesmo que haja uma edição ou parecer questionador, geralmente há espaço pro autor explicar, por exemplo, que aquilo não é pra representar a realidade, que veio de sua imaginação ou é uma referência literária específica. Só que muito autor não quer ter esse embate, ou tem preconceito: todos sabem menos do que ele, e nenhum olhar pode acrescentar nada.

O problema, na minha experiência de leitora, não é querer personagens politicamente corretos, gostáveis ou anódinos. Adoro personagens muito muito mas muito errados. Li Lolita com 15 anos, e adorei, e entendi, mesmo detestando levar cantada de rua de trintões e quarentões. Dolores Haze se parecia com algumas de minhas colegas de escola e até comigo – assim como o próprio Humbert Humbert, em sua sexualidade intelectualmente justificada e muito específica; a mãe de Lolita identifiquei com a minha mãe, com quem eu não me dava nada bem na época – mas fiquei morta de pena quando a personagem morreu. Amo todos os personagens de Dostoiévski, inclusive os mais abjetos. Agora estou lendo Pynchon (Contra o dia, e devo engatar n’O último grito). Então do que estou reclamando? O problema é quando meu repertório de vivências pessoais ou literárias desmente como artificial ou engessada a montagem de temas que o autor fez no texto. Aí eu posso chamar um livro de ruim de consciência limpa.

Eis uma experiência de leitura comum para mim: enxergar nas entrelinhas de um romance escrito por homem uma ideia muito distorcida do que é ser mulher. Uma petição de princípio, se quiserem. Você vai lendo, lendo e a mágica (estética) não acontece como previsto. Você percebe que, para o autor que pariu aquela mulher, “querer engravidar” ou “perder o filho/marido” ou “ser ‘maluca’” é uma motivação autossuficiente, uma espécie de caixa-preta “natural”, advinda talvez do útero? Você, leitora mulher, se apalpa e não encontra em si a possibilidade daquela motivação “natural”, muito mal explicada, ali inserida sem o menor cuidado ou profundidade, e até mesmo com equívoco, como que ocasionada por inexplicáveis hormônios femininos. É uma experiência estética para mim? Sem dúvida. Uma experiência estética equivalente a perder a paciência por motivos de trabalho e ouvir o chefe perguntar se você está com TPM – o que em 99% das vezes não era o efeito pretendido (em Philip Roth, por exemplo, é; você tem que topar o pacto ficcional e ir até o fim – ou desistir no meio).

Um leitor homem pode ler o mesmo livro e não enxergar nada de incômodo nessa representação da mulher. Talvez ele compartilhe da sensação de que mulher é inexplicável mesmo. Já eu, que não compartilho dessa crença e sei das minhas motivações internas, e estou cansada de encontrar sempre esse mesmo estereótipo mal-ajambrado, vou ter essa irca e não posso me omitir. O mesmo vale para o gay, a negra, o cadeirante. Mas quantos deles estão fazendo crítica?

Minorias críticas

Hoje em dia, não poucos. Sim, as minorias estão lendo e pegando o embuste no pulo. Quando as minorias mal retratadas não têm grana/tempo para ler, imagine fazer crítica, nem se lembra que elas existem. Quando elas começam a conquistar espaço, conclamar boicotes e se organizar em veículos de crítica, fica um pouco mais difícil ignorá-las. O uníssono de aprovação (ou brodagem) canônica é quebrado por aquela voz desagradável e incômoda. É bem difícil de engolir: você colocou uma mulher justamente pra calar a boquinha do politicamente correto e é por causa dela que eles vêm pra cima de você? Que gente chata! Logo você responde aos inconvenientes que “só ela achou isso” – e é o que você realmente pensa, porque as outras mulheres todas preferem confidenciar à imprudente bocuda, sabe o livro tal? Também achei bizarro! Que personagem sem sentido! Que desfecho artificial!

Monólogo interno do escritor:

“Eu não tenho que ouvir tanta gente, senão a obra perde a personalidade. Esse personagem não precisa ser complexo.”

É uma possibilidade assustadora, e concreta, que um autor como esse não se importe em retratar minorias de forma rasa – porque são eternas coadjuvantes em suas obras, porque estão ali só como cala-boca do monstrinho politicamente correto, porque ele é bom o suficiente pra isso “não fazer diferença”, porque o “meu jeito” é rei, porque “já mostrou pra um representante da minoria X” (seu único amigo da minoria X?). Essa empáfia em não querer saber a opinião dos Outros sobre sua obra final, e fazer possíveis reparos baseada nela, advém da ideia de gênio romântico, de uma suposta integridade artística que não pode ser desrespeitada por uma nojenta censura. Mas se você sabe (acabei de te contar) que isso interfere negativamente na experiência estética do seu público leitor (agora diverso) a ponto de alijá-lo, você não acha melhor saber? Não acha que pode ser uma edição desejável em vez de censura? Ou acha que o Outro pode ler você mesmo assim, e se não quiser, você não precisa dele? Isso mesmo! Foda-se o leitor!

O ogro das fábulas

Curioso constatar em alguns escritores esse discurso “foda-se o leitor” e, ao mesmo tempo, o da literatura-empatia, literatura-humanismo, que se importa e se coloca no lugar do outro. Conforme vi uma amiga escritora interpelar outro, num debate: “se você não se importa com o leitor, por que publica? Deixa na gaveta!”.

Por esse modelo malparado, as minorias estamos para a literatura como as crianças estão para o ogro das fábulas: crianças são essenciais – pra serem comidas logo no início e oferecerem motivação caixa-preta pros feitos do herói todo-poderoso. Mas as crianças reais, ah, essas, caso leiam essas fábulas, não devem se ofender ou se sentir usadas por causa disso – e se se ofenderem, os incomodados que se retirem. Alguns se retiram mesmo. Outros ficam, e se vingam: Elena Ferrante fez seu ogro ser comido logo no começo, e fornecer motivação pra suas crianças até a velhice.

Difícil aturar que ruim, hoje em dia, em ficção, possa ter a ver também com uma falha de empatia e de humildade. O autor não é onipresente-onipotente-onisciente, e pode ter convivido longamente com mulheres, negros e gays e continuar sem ter ideia de como é ser essa pessoa de dentro para fora (que é do que a literatura trata). Ouvir o Outro antes do romance pronto – e não depois –, pode ser insuficiente para retratar a complexidade da experiência pessoal dele, ou seja, escrever um bom romance. Por isso, leitores beta/editores, e não os que são seus amigos próximos, podem ser uma boa. Você pode muito bem ouvir o que não quer – mas também pode defender seu livro e aprender algo no processo, por que não?


Acho que falta em alguns autores um pouco de vontade de perder a personalidade. Talvez sua personalidade não seja tudo isso que pensam. Afinal, é muita certeza pra pouca vontade de se descobrir e desengessar – ou como se diz por aí: que autoestima da porra. Sou da escola Dostoiévski de (auto)investigação moral: se o processo de escrita de um livro me fizer reavaliar meus valores, me incomodar descortinando coisas novas sobre o mundo, isso é melhor, e não pior; vou buscar essa experiência, não fugir dela. Vou buscar leitores antes, durante e depois, e talvez não engula o que eles disserem, mas o debate é necessário, nem que seja para eu me reconhecer incapaz de mudar meu livro por causa de uma crítica, ou, orgulhosa de um ponto do livro que só serve para mim, publicar o livro como eu quero. Mas sinto que preciso perguntar, dar ouvidos e bancar o incômodo estético, ético ou empático que produzi naquela pessoa, ao menos até um certo ponto razoável. Creio que isso vai me tornar uma escritora melhor, uma pessoa melhor, e vale bem mais do que mandar correndo o original para a editora pra dar tempo de sair antes de virar o ano. Inclusive, se a editora tentasse me apressar a entregar um romance (do que duvido, porque não sou a J.K. Rowling), eu reagiria com indignação: estão desrespeitando a minha integridade artística!
x