Uma amiga me conta de
um episódio de Sex & The City em
que uma das mulheres está namorando um escritor. Ele lhe pede uma leitura
crítica. Ela elogia a obra, mas diz que sua personagem principal feminina é
implausível: uma nova-iorquina redatora de revista que usa scrunchies (frufrus de cabelo), algo datado desde os anos 80. Ele
fica ofendidíssimo. Fim de caso.
Sensitivity readers, ou “leitores sensíveis”, têm sido adotados por
editoras para se certificarem de que o autor não falou nenhuma merda muito
grande sobre minorias. Para mim, se trata de um subtipo do leitor crítico ou
parecerista, adotado por editoras e autores quando creem precisar de uma
segunda opinião. Eu mesma já pedi a amigas que fossem leitoras beta do meu
próximo romance, com duas protagonistas de ascendência indígena e negra. Isso
pra mim faz parte da criação e sempre procuro. Creio que, quando você não tem a
experiência direta – por mais que você esteja envolvida, cultive a empatia,
pesquise ficção e teoria a respeito do tema –, sempre há um ponto cego. Quem
não conhece romances com personagem feminina escritos por homem que fazem muita
mulher chorar sangue ao lembrar que existem? Se esses homens tivessem pensado
em submeter o romance a uma leitura crítica por uma mulher, talvez o desastre
pudesse ter sido evitado... A questão é que muitos desses caras não querem isso
– expor seu romance a uma crítica dessas, e ainda ter o trabalho de mudar o seu
romance depois.
O medo de alguns
escritores se revela ao abominarem leituras críticas de qualquer tipo, não apenas os leitores sensíveis. Tacham-na de
censura e de pasteurização. Numa estranha mistura de insegurança com orgulho, evitam
até editores que “mexem” no texto (?) e ficam ofendidos quando um editor ousa
fazer uma sugestão. Ninguém pode tocar em sua obra sem sua autorização. Ele,
aliás, não escreve pensando no leitor.
Então o problema pra
mim não é a existência de sensitivity readers
ou leitores beta ou editores, e sim a editora obrigar o
escritor a obedecer a um tipo específico de parecer, desrespeitando a sua
integridade artística. Aliás, a editora faz isso não por se preocupar de
verdade com minorias, mas por motivos financeiros. Um livro boicotado não vende,
uma edição recolhida não lucra, um processinho desagrada os acionistas e
espanta investidores...
Mas, na real, as editoras brasileiras não obrigam
ninguém a nada, gente. Aqui, editores
são aconselhados a “pegar leve” com Fulano e, de qualquer modo, têm livros
demais pra editar: não perca muito tempo
com isso é a tônica. E ninguém gosta muito de encomendar parecer externo;
desvaloriza a “prata da casa”. Quando há conselhos, eles são bem negociáveis: o
autor pode explicar porque tomou aquela decisão artística (“o personagem é escroto
mesmo!”) ou, em último caso, bater o pé e fazer questão (costuma funcionar). Então
quem vê esse texto antes da publicação sem ser escritor e editor? No máximo, os
amigos e namoradxs do escritor, antes de ele mandar à editora. Essas pessoas,
evidentemente, não vão fazer nenhuma revisão radical.
Por mim, que deixem a
pessoa escrever romance ruim.
Ética
x estética
Outro problema reside
na definição de ruim. Um livro
imoral pode ser esteticamente ótimo (Justine),
e um livro moralmente correto pode curar a insônia em apenas duas páginas (O feijão e o sonho). A boa ficção deve
ir além do ético e do estético: não é um exemplo pra vida, nem um comentário
direto sobre práticas existentes, ainda que use de elementos selecionados da
realidade. Conforme sugere o teórico Wolfgang Iser, é na ficção que você tem a
liberdade de entretecer imaginação e realidade para criar uma máquina que, na
interação com o leitor, gera experiência estética e, depois, sentido. O autor e
o leitor entram com seus respectivos repertórios de vivências e de tradição
literária – e, muito importante, com suas imaginações; a leitura do texto põe
em jogo esses elementos, trazendo algo de novo ao mundo.
No contexto atual de leitores sensíveis, muito se fala de uma
“censura do politicamente correto”, que proibiria
personagens antipáticos, homofóbicos, machistas, racistas, criminosos, ou então
de uma tendência a querer transformar literatura em “auto-ajuda”. Como falei,
essa “proibição” simplesmente não acontece no Brasil. Mesmo que haja uma edição
ou parecer questionador, geralmente há
espaço pro autor explicar, por exemplo, que aquilo não é pra representar a
realidade, que veio de sua imaginação ou é uma referência literária específica.
Só que muito autor não quer ter esse
embate, ou tem preconceito: todos sabem menos do que ele, e nenhum olhar pode
acrescentar nada.
O problema, na minha
experiência de leitora, não é querer personagens politicamente corretos,
gostáveis ou anódinos. Adoro personagens muito muito mas muito errados. Li Lolita com 15 anos, e adorei, e entendi,
mesmo detestando levar cantada de rua de trintões e quarentões. Dolores Haze se
parecia com algumas de minhas colegas de escola e até comigo – assim como o
próprio Humbert Humbert, em sua sexualidade intelectualmente justificada e
muito específica; a mãe de Lolita identifiquei com a minha mãe, com quem eu não
me dava nada bem na época – mas fiquei morta de pena quando a personagem morreu.
Amo todos os personagens de Dostoiévski, inclusive os mais abjetos. Agora estou
lendo Pynchon (Contra o dia, e devo
engatar n’O último grito). Então do
que estou reclamando? O problema é quando meu repertório de vivências pessoais
ou literárias desmente como artificial
ou engessada a montagem de temas que
o autor fez no texto. Aí eu posso chamar um livro de ruim de consciência limpa.
Eis uma experiência
de leitura comum para mim: enxergar nas entrelinhas de um romance escrito por
homem uma ideia muito distorcida do que é ser mulher. Uma petição de princípio,
se quiserem. Você vai lendo, lendo e a mágica (estética) não acontece como
previsto. Você percebe que, para o autor que pariu aquela mulher, “querer
engravidar” ou “perder o filho/marido” ou “ser ‘maluca’” é uma motivação autossuficiente, uma espécie
de caixa-preta “natural”, advinda
talvez do útero? Você, leitora mulher, se apalpa e não encontra em si a
possibilidade daquela motivação “natural”, muito mal explicada, ali inserida
sem o menor cuidado ou profundidade, e até mesmo com equívoco, como que
ocasionada por inexplicáveis hormônios femininos. É uma experiência estética
para mim? Sem dúvida. Uma experiência estética equivalente a perder a paciência
por motivos de trabalho e ouvir o chefe perguntar se você está com TPM – o que
em 99% das vezes não era o efeito pretendido (em Philip Roth, por exemplo, é;
você tem que topar o pacto ficcional e ir até o fim – ou desistir no meio).
Um leitor homem pode
ler o mesmo livro e não enxergar nada de incômodo nessa representação da mulher.
Talvez ele compartilhe da sensação de que mulher é inexplicável mesmo. Já eu,
que não compartilho dessa crença e sei das minhas motivações internas, e estou
cansada de encontrar sempre esse mesmo estereótipo mal-ajambrado, vou ter essa
irca e não posso me omitir. O mesmo vale para o gay, a negra, o cadeirante. Mas
quantos deles estão fazendo crítica?
Minorias críticas
Hoje em dia, não
poucos. Sim, as minorias estão lendo e
pegando o embuste no pulo. Quando as minorias mal retratadas não têm
grana/tempo para ler, imagine fazer crítica, nem se lembra que elas existem.
Quando elas começam a conquistar espaço, conclamar boicotes e se organizar em
veículos de crítica, fica um pouco mais difícil ignorá-las. O uníssono de
aprovação (ou brodagem) canônica é quebrado por aquela voz desagradável e
incômoda. É bem difícil de engolir: você colocou uma mulher justamente pra calar a boquinha do
politicamente correto e é por causa dela
que eles vêm pra cima de você? Que gente chata! Logo você responde aos
inconvenientes que “só ela achou isso” – e é o que você realmente pensa, porque
as outras mulheres todas preferem confidenciar à imprudente bocuda, sabe o livro tal? Também achei bizarro! Que
personagem sem sentido! Que desfecho artificial!
Monólogo interno do
escritor:
“Eu não tenho que ouvir tanta gente, senão a
obra perde a personalidade. Esse personagem não precisa ser complexo.”
É uma possibilidade assustadora,
e concreta, que um autor como esse não
se importe em retratar minorias de forma rasa – porque são eternas
coadjuvantes em suas obras, porque estão ali só como cala-boca do monstrinho
politicamente correto, porque ele é bom o suficiente pra isso “não fazer
diferença”, porque o “meu jeito” é rei, porque “já mostrou pra um representante
da minoria X” (seu único amigo da minoria X?). Essa empáfia em não querer saber
a opinião dos Outros sobre sua obra final, e fazer possíveis reparos baseada
nela, advém da ideia de gênio romântico, de uma suposta integridade artística
que não pode ser desrespeitada por uma nojenta censura. Mas se você sabe
(acabei de te contar) que isso interfere negativamente na experiência estética
do seu público leitor (agora diverso) a ponto de alijá-lo, você não acha melhor
saber? Não acha que pode ser uma edição desejável em vez de censura? Ou acha
que o Outro pode ler você mesmo assim,
e se não quiser, você não precisa dele? Isso
mesmo! Foda-se o leitor!
O ogro das fábulas
Curioso constatar em
alguns escritores esse discurso “foda-se o leitor” e, ao mesmo tempo, o da literatura-empatia, literatura-humanismo, que
se importa e se coloca no lugar do outro. Conforme vi uma amiga escritora interpelar
outro, num debate: “se você não se importa com o leitor, por que publica? Deixa
na gaveta!”.
Por esse modelo
malparado, as minorias estamos para a literatura como as crianças estão para o
ogro das fábulas: crianças são essenciais – pra serem comidas logo no início e oferecerem
motivação caixa-preta pros feitos do herói todo-poderoso. Mas as crianças reais, ah, essas, caso leiam essas
fábulas, não devem se ofender ou se
sentir usadas por causa disso – e se se ofenderem, os incomodados que se retirem.
Alguns se retiram mesmo. Outros ficam, e se vingam: Elena Ferrante fez seu ogro
ser comido logo no começo, e fornecer motivação pra suas crianças até a
velhice.
Difícil aturar que ruim,
hoje em dia, em ficção, possa ter a ver também com uma falha de empatia e de humildade. O autor não é
onipresente-onipotente-onisciente, e pode ter convivido longamente com
mulheres, negros e gays e continuar sem ter ideia de como é ser essa pessoa de
dentro para fora (que é do que a literatura trata). Ouvir o Outro antes do romance pronto – e não depois –, pode ser insuficiente para retratar a complexidade da experiência pessoal
dele, ou seja, escrever um bom romance. Por isso, leitores beta/editores, e não
os que são seus amigos próximos, podem ser uma boa. Você pode muito bem ouvir o
que não quer – mas também pode defender seu livro e aprender algo no processo,
por que não?
Acho que falta em
alguns autores um pouco de vontade de perder a personalidade. Talvez sua
personalidade não seja tudo isso que pensam. Afinal, é muita certeza pra pouca
vontade de se descobrir e desengessar – ou como se diz por aí: que autoestima da porra. Sou da escola
Dostoiévski de (auto)investigação moral: se o processo de escrita de um livro
me fizer reavaliar meus valores, me incomodar descortinando coisas novas sobre
o mundo, isso é melhor, e não pior;
vou buscar essa experiência, não
fugir dela. Vou buscar leitores antes, durante e depois, e talvez não engula o
que eles disserem, mas o debate é necessário, nem que seja para eu me
reconhecer incapaz de mudar meu livro por causa de uma crítica, ou, orgulhosa
de um ponto do livro que só serve para mim, publicar o livro como eu quero. Mas sinto que preciso
perguntar, dar ouvidos e bancar o incômodo estético, ético ou empático que
produzi naquela pessoa, ao menos até um certo ponto razoável. Creio que isso
vai me tornar uma escritora melhor, uma pessoa melhor, e vale bem mais do que mandar
correndo o original para a editora pra dar tempo de sair antes de virar o ano.
Inclusive, se a editora tentasse me apressar a entregar um romance (do que
duvido, porque não sou a J.K. Rowling), eu reagiria com indignação: estão desrespeitando a minha integridade
artística!
x