Como preciso explicar pro meu editor o que ando fazendo, pensei em escrever um texto corrido sobre como está o trabalho com o Owned, meu livro novo. É um livro que se bifurca em mil caminhos. A cada passo você vai ter escolhas, decisões a tomar; e essas escolhas vão ter consequências. O personagem principal é um técnico de informática viciado em videogames cuja vida começa a virar um videogame. É um livro para jovens acima de 18 anos e fala sobre mulher, amor e matemática*.
No início, estudei um pouco de teoria dos jogos para tentar simular a existência de leitores como jogadores. O fato de o leitor estar jogando contra ou junto comigo seria determinado pelas próprias escolhas dele. Claro que o fato de eu determinar quais escolhas do leitor seriam possíveis cercearia a liberdade absoluta, mas eu também não tenho liberdade absoluta, senão gssmj iuoius jk kelkj sjdkfnsd tatah. Macacos batucando máquinas de escrever dificilmente escreverão Hamlet, e um pouco menos dificilmente "um" Hamlet. Então se eu estou cerceada pelas baixas probabilidades de você entender totalmente meu output cru, você também está.
Conversei com a Diana de Hollanda sobre matemática num lançamento de livro e ela me contou das aulas de lógica que andava assistindo. Conversei com o professor, Oswaldo Chateaubriand, e ele gentilmente me deixou frequentar a aula. Depois que se inteirou de como era o livro e da matemática que já havia nele (principalmente teoria dos jogos), ele me encaminhou para o estudo de lógica dialógica.
Fazendo um grande parêntesis, eu não conseguia explicar para as pessoas porque eu andava necessitando de matemática e, depois, em que estava me ajudando estudá-la. E vou fazer mais uma tentativa agora.
Voltei a estudar matemática quando quase terminava de escrever o livro. Por quê? Para descobrir do que estive falando o tempo todo. Frequentei a aula e descobri que há abordagens "construtivas" e "não construtivas" à matemática - assim como em alguns finais de Owned, eu e o leitor "perdemos" (não construímos uma narrativa válida). Às vezes, tive que escrever trechos em que eu "perco" (simulo perder), o que significava escrever cenas que faziam sentido para a série de escolhas que as precederam mas me desagradavam pessoalmente. Nos trechos em que eu "ganho" (simulo ganhar), há um final que eu me diverti em escrever, mas com o qual o leitor pode se sentir sacaneado.
Para além do fato de o livro todo ser uma simulação, digo que o leitor pode se sentir sacaneado porque o leitor real pode muito bem gostar do final que meu leitor simulado acharia uma traição. Na publicação e na leitura - quando o "programa" rodar todo na cabeça de leitores reais - sei que vou me surpreender, mas não sei como.
Uma ajuda que a lógica me deu foi para deduzir as regras do meu próprio jogo. Há uma brevíssima instrução de como jogar no começo de Owned (meu pacto narrativo) que pode se passar por regra, mas o que estou chamando de regra aqui são os pressupostos ocultos com que trabalhei ao escrever. Por exemplo: "cada escolha do leitor é uma jogada; como autora empírica, eu posso cooperar ou trair". Só que fui tão longe escrevendo que não tinha percebido que minhas regras tinham mudado, casado e tido filhos. Uma vez colocando as regras (as antigas e as novas) no papel, ficou mais fácil escrever as últimas linhas.
Sim, as últimas linhas. Bem, eu estava batendo cabeça com (para?) completudes, era isso. Eu tinha começado com regras muito fortes, inexoráveis, e precisei flexibilizá-las para fazer caber a variedade mirabolante dos casos que tinham surgido (os caminhos que eu tinha escrito) depois de criá-las. Ou seja, eu sentia minha canoa furada; a matemática me ajudou a entender que talvez não haja barco perfeito e que não há canoa certa, há mais a canoa certa para o rio em questão. Fato: estou trabalhando no último trecho.
Enfim, estou estudando a tal lógica dialógica e descobri que era mais ou menos disso mesmo que eu estava brincando. Aliás, esses dias me passaram também um jogo de cartas relacionado.
Eu não sabia onde estava me metendo. Não sabia onde meu livro ia me levar. Mas certamente não parti da ideia de escrever um livro bobinho, caça-níqueis, frívolo ou experimentalesco sobre videogames. A ressalva é porque, no Brasil, o adjetivo "sério" está grudado como uma craca ao conceito muito feliz de "não picaretagem". Só que as demais acepções de "seriedade" vazam como uma caneta estourada para esse rótulo e contaminam público e crítica de uma terrível incapacidade de rir e brincar. Nesse sentido não-picareta eu quero muito ser uma autora séria, mas também não quero abrir mão do lúdico, pode? 'brigada. É que por mim eu podia jurar que não estou falando sozinha.
Depois vem um artigo, juro que menorzinho, sobre programação.
* Narrador d'O homem que calculava, de Malba Tahan