28.8.13

Momento lindo

Depois que ganhei vodca na boca da Sasha Grey, fiquei toda ansiosa para que saísse logo a foto. A música é ótima, mas o maior lance da festa I Hate Flash são as fotos, tiradas por um coletivo de fotógrafos profissionais, que as disponibilizam em copyleft no site depois de escolher as melhores. A festa foi num sábado, e, na terça-feira, a foto saiu:



A foto ficou muito melhor do que eu poderia imaginar. Foi uma conversão digna do que eu senti naquele momento lindo. Foi batida com arte, selecionada com carinho. Mas sabendo que devia haver mais fotos, eu as cobicei. Daí encontrei esse aviso no FAQ do site:

“Uma foto minha, que foi tirada no evento não saiu no site, é possível recuperá-la? 
Infelizmente, não. Apenas selecionamos o que consideramos as fotos mais divertidas e espontâneas de cada evento, e devido a um fluxo de trabalho que demanda velocidade e espaço em disco, estamos acostumados a deletar o que não entra pro set. Desculpa!”

Divertida minha foto. Concordo. Agora, espontânea? Minha performance informada por anos-luz de pornografia, espontânea? Fiquei quase ofendida.

Dando uma olhada nas outras fotos dos demais felizardos da festa, a afirmativa sobre “espontaneidade” se torna ainda mais incompreensível. As pessoas nitidamente estão tentando parecer bonitinhas na foto – sem arreganhar demais a boca nem espichar a língua –, ou segurando a garrafa de vodca, ou olhando para a câmera, ou segurando um celular com que estavam tentando “guardar” o momento. Amiga, você não pode ter o presente por mais de um momento. A própria definição de “presente” o proíbe. Com essa tentativa de espetar o tempo na cortiça, você deixa de ter o presente até no momento em que você tem direito a ele.

Sempre fui muito amiga do presente. O que você mais ouve nos vídeos das minhas festas de infância é uma narradora onisciente raivosa – minha mãe – ralhando comigo por eu não querer olhar, sorrir e dar tchau para a câmera. Eu preferia ficar fitando o nada, ou brincar nas esculturas de jardim do salão de festas, ou desmaiar de mentirinha nos braços das minhas amigas. Aprendi a ignorar a câmera, e a minha mãe, se quisesse viver o momento. Não era apenas a minha mãe. Eram as meninas consumistas da escola, os passadores de cantada da rua, as figuras de autoridade que se sentiam ameaçadas e tentavam me esmigalhar.

Se estão constantemente tentando te humilhar, depois de um tempo você não fica mais vermelha. E aprende a ver as causas. Por que sempre comigo? As estruturas de poder e as motivações ocultas se tornam transparentes. Você aprende a requisitar o seu poder lá dentro, e a dar uns empurrões nas vigas para as coisas mudarem.

Sábado passado, quando Sasha começou a discotecar, 90% da festa levantou os celulares e começou a filmá-la. E ela continuou trabalhando muito concentrada na mudança de faixas e equalizações. E arrasou no set. Como ela fez isso? Como ela é capaz?

Bem, não é só “concentração”. É um dom para evitar a autoconsciência que foi percebido cedo e muito bem treinado. Esse dom passa por compartimentar os circuitos da mente (como num quadro de luz) e treinar a mente para desligar os corretos em momentos de estresse. O nervosismo de falar/atuar em público (stage fright), o constrangimento, a humilhação: tudo isso traz uma resposta não-verbal (cinésica), que todo ator, desde o primeiro exercício de teatro, aprende a recondicionar. Mas as emoções estão lá, e têm que sair por algum lugar.

Você não precisa ter feito teatro para aprender isso (e que a lente da câmera distorce a imagem do corpo; e que a presença da câmera faz as pessoas se comportarem diferente; e que os critérios de edição desse material audiovisual podem fazer com que sua presença não seja “registrada”, dando vontade de levar também sua câmera particular para “mostrar que foi”). Quer dizer, as pessoas sempre adoraram julgar as outras. Só aumentou o número de olhares, e o tempo que eles armazenam a fofoca. Hoje em dia sempre tem câmeras apontadas para você, por mais que você não goste delas. Então evitar a autoconsciência se torna uma capacidade essencial.

Quando digo às pessoas que sou esquizoide, me refiro a essa capacidade de me proteger dos julgamentos da realidade por compartimentação. Não que eu seja incapaz de afeto. Às vezes, uso meus poderes do jeito errado, e perco um aspecto fundamental do presente, ou magoo as pessoas, ou, o mais comum, as deixo confusas. Nessa festa, minha estratégia (não espontânea!!!) foi dançar com o DJ, em frente à caixa de som, como uma clubber old school (é bom ter 30 anos), não procurando o olhar de ninguém, nem as câmeras, nem o do DJ, sendo apenas um corpo que dançava informado pela música. Não fiz um vídeo, não tirei uma foto. Na hora, perdi a presença de um amigo a metros de distância (tudo bem que ele emagreceu mais de dez quilos), e quase que perco Sasha distribuindo vodca. Provavelmente agi de forma bem antipática para padrões cariocas. Mas consegui evitar a porcaria da autoconsciência. E meu amigo não-reconhecido, muito solícito, estava com uma câmera e registrou a minha dança. Porém, de seu ponto de vista tampado pela mesa de DJ, ele não viu o momento da vodca dada na minha boca. Mas sei que, mesmo que não houvesse a foto acima, ele acreditaria em mim e comemoraria o momento comigo. O que pra mim ainda é a medida de uma amizade legal, apesar de todas as modernidades.