Acabei de jogar um
jogo chamado The Talos Principle, da
Croteam, uma desenvolvedora croata. Ouvi falar que era um puzzle parecido com Portal e Antichamber, dois grandes favoritos, e resolvi experimentar, mesmo
sem saber muito sobre a história. Você desperta no papel de um robô respondendo
aos comandos de um certo Elohim em um certo Jardim. Elohim te chama de meu
filho ("my child") e quer que você resolva muitos puzzles para ganhar
"sigils" (que são iguais a peças de Tetris). Sua recompensa, diz
ele, será "a vida eterna".
Mas logo você
descobre que não é só isso que tem para fazer no Jardim. Você pode cumprir
outras missões fora a dada por Elohim. Você pode explorar e encontrar coisas
novas a fazer -- algumas delas contrariando diretamente as ordens de Elohim,
como subir na torre proibida.
E aí? Prontos para
o SPOILER?
Você está dentro de
uma simulação. Um ambiente virtual para robôs criado por seres humanos pouco
antes de sua mal-explicada extinção. Mais ou menos uma Matrix ao contrário --
mas uma Matrix designada para que sua cobaia robótica extrapole o experimento,
tornando-se... humano. Afinal, na concepção do jogo, é isso que humanos fazem:
brincam, pensam lateralmente, são curiosos e... desobedecem.
Agora eu vou CONTAR
O FINAL, então, fiquem avisados que é possível pular o próximo parágrafo. (Pessoalmente,
acho que contá-lo não estraga o jogo.)
O objetivo final
dessa simulação é produzir um pós-humano na carcaça de um robô. Apenas o robô
verdadeiramente "independente", que conseguir “pensar por si mesmo”, futricar
em tudo e desobedecer Elohim, "matando-o" (igual a um humano), será
selecionado para ser gravado em um corpo físico e acessar o mundo real. Porém,
atentando para o detalhe de que nenhum homem é uma ilha, o enigma final no topo
da torre requer colaboração com outro robô, The Shepherd -- mas também há outra
robô, a Samsara, tentando atrapalhar sua ascensão. (Gostei dessa parte.)
Em The Talos Principle, a humanidade de
carne e osso foi eliminada e esta simulação foi seu último esforço pra se
perpetuar. A singularidade miguxa do jogo (ei,
máquinas, continuem a humanidade aí por nós) até pode cativar um jogador desavisado,
assim como atualmente há quem esteja cativado pela ideia de “literatura feita
por robôs”. Mas tudo cai por terra quando você pensa que o robô
"humano" é controlado (no jogo) por um humano.
É uma nova versão
daquela máquina de xadrez com uma pessoa dentro...
Um ser humano de
verdade controlando um robô “destinado a pensar de forma independente, como um ser
humano”. Isso é circular. Assim como é circular pensar que robôs podem produzir
literatura "independente" se são os humanos os juízes finais da qualidade dessa
literatura. Quando os robôs puderem votar entre si e dar, digamos, um prêmio
literário robótico à melhor literatura produzida por robôs, para robôs, aí a
gente conversa.
Melhor ainda se
eles mesmos tiverem a ideia de criar esse prêmio para diferenciar a literatura
robótica “séria” da literatura robótica ruim, muito popular, mas que apela aos
mais baixos instintos do robô.
Pois é, não gosto de rótulos como literatura robótica ou feminina ou erótica, exceto como mote ocasional ("tema de redação") em antologias e afins. Para mim, essa separação entre elementos (assim como independência, livre arbítrio) que gostaríamos de postular
para fins de estudo não pode ser reificada. Quer dizer, até pode, e é, muitas
vezes, mas raramente com a consciência de suas limitações. Gostei de The Talos Principle na crítica sutil a essa
ideia de que “dá para separar” “sujeito” de “objeto” -- marcando-os como tais para todo sempre. Traçar a linha que divide
cego de bengala, homem da natureza, homem de máquina para fins de estudo não quer
dizer que esta linha esteja lá, não como fato inalterável. No mundo real, as
coisas vazam uma para a outra, e humano mesmo é não conseguir dar conta de tudo
(e não admitir isso por nada deste mundo).