Estava
lendo o Twitter de Paulo Coelho – sim, eu o assino – quando encontrei uma
reclamação: “certa
vez tive uma musa... e aí ela me acusou no Sunday
Times de ‘roubar sua alma!’”. E postou uma matéria
onde Christina Lamb, jornalista de guerra, se queixava de ter sido escolhida
como musa da personagem principal de O
Zahir, reconhecendo também que ficara lisonjeada com a homenagem. Mas, para
ela, o saldo final era negativo. Dizia, de fato, que sua alma fora roubada.
O efeito cumulativo
Originalmente,
a musa era uma divindade que inspirava o autor segundo sua arte: Calíope
inspirava o orador público, Terpsícore os dançarinos, o dramaturgo tinha a
ajuda de Melpômene... assim, muitas obras começavam com a invocação às musas.
Mas a metáfora não demorou nadinha a se deslocar para mulheres reais. Safo,
poetisa da ilha de Lesbos, logo foi arrolada como “a décima musa” por ninguém
menos que Platão. E hoje é assim que entendemos “musa”: uma mulher que se
destaca em algum campo (até mesmo o de futebol) e é bonita, atraente.
No
mundo literário, chamar de musa é
considerado o jeito elegante de expressar interesse sexual, ou de reconhecer
que seu magnetismo sexual é tão grande que você até foi aproveitada como
personagem (uau!). Nunca vi ninguém chamando o DFW de muso do Franzen e do
Eugenides. Deve ser porque nesse caso eles têm direito de existir como outras
coisas (sujeitos, por exemplo), e ninguém se sentiria confortável sugerindo
homossexualidade aí. Então tem, sim, uma sugestão sexual em chamar alguém de
musa, pelo menos hoje em dia. E tem, sim, machismo.
Explicar
que você não gosta da pecha de musa é como explicar que você não está a fim de
levar uma cantada. É atenção na hora errada, do jeito errado, no lugar errado.
E é prejudicada pelo efeito cumulativo: parece que tudo o que querem com você é
te chamar de musa e/ou pegar sua vida e reescrever do jeito deles. Ler o que você escreve? Que nada.
A musa involuntária
Não sou
hipócrita: todos e todas precisam de atenção para fazer suas coisas – seja essa coisa conseguir alguém com quem trepar,
seja avançar na carreira – mas no caso das mulheres essas atenções vêm muito contaminadas
umas pelas outras. MUITO. Não dá para descontaminar totalmente (nem acredito
que deveria), mas se é só assim que
acontece...
...alguém
aí já viu Mad Men? (E Mad Max?)
Hoje em
dia, certas coisas mudaram. Há muito incentivo para a mulher sair da feminice
tradicional (casa, filhos, marido) e se concentrar em carreira, experimentações
sexuais, hobbies considerados masculinos (futebol, videogames, marcenaria). Mas
uma vez que você chega nesses “lugares” onde é minoria, você se torna objeto de
desejo, já que está tão “perto do coração dos homens”. Mas justamente agora que eu estava tentando ser um sujeito?, você
pensa.
Hoje
precisamos mais de espaço para atuar do que príncipes para nos salvar desse
trabalho todo de sermos alguém. O irônico é que as mulheres que querem
desesperadamente ocupar esse pedestal de musa não interessam aos eleitores de
musas. Todos sabem que a moça que jura que foi musa de livro X ou vive tentando
colar no autor Y não é mesmo a musa (sabem, não é?). Os eleitores de musas
gostam justamente das que não querem saber disso. Por quê? Porque beleza não é
tudo. Eles querem também morcegar a sua vida, aquela que você construiu pra
você a duras penas.
A musa como double bind (duplo constrangimento)
É uma
cilada, Bino! Uma armadilha clássica. Você faz uma coisa por um motivo pessoal
e afetivo (tocar bateria, escalar montanhas) e a maioria masculina te trata
como se você estivesse ali com segundas intenções: conseguir homem, é claro.
Mais especificamente, ele. “Pode parar de fingir que gosta mesmo de estudar
engenharia: você já me encontrou!”
Por
dizer não para esse narcisismo masculino tão tolerado e insidioso, você se
torna um pouco odiada também, por “invadir o mundo masculino”, imagine só, querendo ser melhor que eles. Quem tem terceiras
intenções, que fique claro, são eles – e ela se chama “te manter no teu lugar”.
Essa
armadilha que mencionei também tem nome. É o famoso double bind, que costuma ser traduzido como duplo vínculo ou duplo
constrangimento; em bom português, “se
correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Você pode dizer não pros
homens do seu campo até se ver emparedada pelo ressentimento alheio, ou dizer
sim (querendo de verdade ou não) e virar “a namorada do Fulano” ou “a piranha
do pedaço” – coisas que também emparedam. De qualquer modo, você geralmente acaba
odiando tudo nesse campo, a começar pelos seus colegas, a terminar pelo fato de
não ascender na carreira, batendo no tal teto de vidro. “Eu até queria ir no
ensaio hoje, mas para isso tenho que enfrentar aquele clima estranho na banda
depois que fiquei com Cicrano e disse não pro Beltrano...” Para sair da relação
doentia, o único meio é deixar o seu
campo para trás (“provando” mais uma vez que “mulheres não são ‘feitas’ pra isso”).
É o que
muitas fazem: desistem. Desistem de uma relação afetiva com a ciência, a
programação, a cultura nerd ou o que seja porque
ligam mais para sua saúde mental (copyright Jane Eyre, 1847). Uma relação
que tinha tudo para ser saudável, mas acaba tóxica porque o campo é constituído
de pessoas, as pessoas são na maioria machistas e você só queria ser feliz
deixando acontecer naturalmente – o que fosse, até sexo. E o que acontece não
tem nada de natural: é uma tentativa de manter as coisas como são, perversas.
O roubo de
cena e o disclaimer “nem todo homem”
Nem
todo homem é mal intencionado. Quando alguém arrola uma mulher como musa, e
praticamente aponta quem é, talvez genuinamente não entenda como é ruim para
nós essa “grande honra”. Então vou explicar.
Muitas
de nós lutamos a vida inteira para poder agir como sujeito de nossas vidas: fazer
karatê em vez de balé, poder sair à noite, cursar química e não nutrição.
Alguém escolher pegar nossas vidas que tanto lutamos para moldar sob nossos
próprios olhos (exigentíssimos!) e, sem nos consultar, expô-la como criação sua
aos olhos dos outros é ultrajante e doloroso. Nos rouba a cena enquanto finge
divulgá-la. Ao mesmo tempo que essa escolha reconhece externamente como
“interessante” a identidade que tanto nos custou para montar, sugere, querendo
ou não, que ela carece de validação externa – uma validação historicamente concedida...
por homens. E geralmente por motivos como... beleza física – daí a palavra
“musa” ser tão incômoda para nós, que queremos ser mais que um rostinho bonito.
Ou seríamos modelos, misses, rainhas do bumbum.
(Nada
contra essas profissões. Mesmo. Mas me disseram, e acreditei, que escolhendo
uma profissão não relacionada com o corpo eu teria muito menos problemas com
homens infantis e abusados. E não é verdade não.)
(Em
tempo: Gisele Bündchen é musa porque trouxe algo além da beleza pros desfiles.
Uma vivacidade, uma alegria de viver, uma espontaneidade que as modelos em
geral não têm. Mas, acima de tudo, profissionalismo. Ela conseguiu ser sujeito.)
Vamos
dizer que você seja escritor e considera uma mulher real a sua musa. Acha ela
bonita, acha foda o que ela fez com a própria vida. Longe de mim querer te
proibir de se inspirar em alguém para escrever. Se o objetivo é esse, o que
seria elegante? Decompõe a mulher, cara. Decompõe em vários personagens, não
diga quem os inspirou. Diga que foram várias. Diga que não foi ninguém. E não conte
para ela. Não a coloque nessa berlinda terrível, nesse double bind. Porque ou ela fala que não curtiu e prejudica a
relação entre vocês, ou engole o sapo e prejudica a relação entre vocês.
Agora,
se o seu objetivo é pegar sua musa, e ela é uma mulher empenhada em ter vida
própria, vou contar um segredo de polichinelo: não vai dar certo. Quando a
mulher fica sabendo que foi/é sua musa, ela automaticamente perde qualquer
tesão que porventura ela já tenha nutrido por você. Porque você não entende,
não entende...! (Se quer entender, releia o texto.)
Fica o
alerta: não adianta se ressentir por ela não querer ocupar esse pedestal que
você escolheu unilateralmente para ela. Ela vai se sentir roubada, não
homenageada. Não é você; é que são muitos “vocês” e ela já está de saco cheio
de ficar ali em cima sem fazer nada.
A
sensação que tenho, no entanto, é que a maioria dos homens que nos colocam
nesse poleiro já sabe muito bem disso. Ficar lembrando continuamente que somos
mulheres – seja com cantadas e “elogios” ou cobranças de conhecimento profundo
do campo –, com toda a carga de bosta que atrelaram à identidade “feminino” (frágil,
emotiva, irracional, fútil, complicada, inexplicável, esquisita, misteriosa, alienígena...),
me parece, hoje em dia, só um jeito canalha de nos exasperar e enxotar do
espaço que adorariam que fosse só deles. Não vai ser não, amigo. Já estamos
ligadas nesse mecanismo, e ligadas umas com as outras. O circuito alternativo,
aquele que levanta a bola também das mulheres, já está acontecendo, e o
circuito machista vai encolher até sumir. Nem que seja por não se reproduzir...
Esteja
o rapaz nessa por inocência ou com malícia, o fato é que uma hora ele vai
rodar. Não esqueça, além de criadoras, nós também somos o público.