“Mas não é apenas a vida, como fez o Cristo, que o bodisatva sacrifica. O sacrifício da vida? Fraco dom para a alma da compaixão búdica, bom apenas para o apetite de uma tigresa. Para a salvação do gênero humano, ou melhor, de todos os seres sensíveis (...) é a sua própria salvação, nada menos, que [o bodisatva] Kanon vai sacrificar. Sentimento sublime: imaginemos Cristo sacrificando sua divindade. (...) O bodisatva então, a ponto de adquirir a consciência e a felicidade, renuncia a elas deliberadamente, dizem os textos maaianistas. Esse nirvana que lhe cabe, ele o rejeita, não o aceitará antes que todos os seres vivos sejam também libertados, não consentirá em se evadir do sofrimento antes que o sofrimento seja apagado do universo inteiro. Alguém já terá ido mais longe na generosidade?” – (pp.160-161 do livro A morte voluntária no Japão, de Maurice Pinguet)
Quando digo na orelha de A feia noite que Maria Luiza é uma bodisatva profana, é isso que quero dizer. Apenas substitua na penúltima frase “libertados” por “castigados” e “apagado” por “distribuído” que você tem Maria Luiza in a nutshell. A princípio, ela pode parecer a típica garota entediada, fazendo merdinha por falta do que fazer; mas conforme o próprio Francisco descobre, ela é superdotada, mas pratica o auto-sacrifício em nome do ódio pela humanidade. Francisco, por sua vez, é um asceta clássico, que sente culpa por ganhar muito dinheiro e a “expia” com cooper diário e antidepressivos. É um livro oriental sobre um problema ocidental.
A morte voluntária no Japão não é um livro emo, como pode parecer. Ele explica a cultura de suicídio no Japão, o que nos ajuda a entender melhor o tao de filmes como Suicide Club; além disso, elucida até a onda de filmes orientais com espíritos vingativos – O chamado, Dark Water, Ringu, Espíritos, vocês sabem -- que hoje faz escola em Hollywood.
“Sempre se temeu o tatari dos mortos, as represálias daqueles que tinham sido mortos ou que se tinham matado por terem sido caluniados, injustamente tratados. A alma vingadora atormentava seus inimigos, atingia com seus golpes os inocentes, desencadeava calamidades. Devia-se proceder, nestes casos, a ritos de apaziguamento (chinkon) muito elaborados. [Trecho anterior:] Essa superstição contribuiu para moderar os costumes: um inimigo podia ser mais perigoso morto do que vivo! Ele podia perseguir seus perseguidores. (...) Confiava-se no equilíbrio da dissuasão recíproca: não exaspere seu adversário, ele poderia de repente morrer, nada mais o reteria e você veria então que ele não esqueceu nenhuma das suas ofensas.” (pp. 104-106)
Também se explica como a mãe japonesa educa os filhos:
“[A mãe] se empenha no espetáculo de sua paciência, de sua resignação, de sua dor. Em lugar de quebrar, de domar ou de desprezar a cólera da criança, ela procura suportá-la sacrificialmente. Esta é a estratégia educativa que lhe inspira a tradição: estratégia de não-resistência. Sabe-se que virá um momento em que a criança sentirá angústia por atacar o objeto de seu amor e por destruir laços que lhe são indispensáveis. De repente irá recuar diante dessa cólera que sente como perigosa e má, e reagindo, sua raiva se transformará em piedade – e o que sobrar de agressividade se voltará contra ele mesmo: ele se identificará à vítima de sua própria agressão, que ele ama e de quem depende. O masoquismo materno, culturalmente programado, terá atingido seu fim, provocando o surgimento do superego e do sentimento de responsabilidade.” (p. 67)
O pior é que nem tinha lido isso antes de escrever A feia noite. Nem sabia muito sobre bodisatvas. Comecei a ler por prazer e por causa do Conto japonês: Mousmé, que está por terminar.