8.12.11

"Um apartamento, para quem sempre viveu numa casa, com seus telhados acolhedores e o céu bem à mão, é um espaço abstrato, frio, apenas uma ideia de moradia: habitamos um interior sem exterior, transformados em pensamentos que sobem elevadores e percorrem corredores, cavernas e grutas geométricas, túneis elevados onde vivem pessoas desconhecidas e de onde súbitas janelas derramam fachos artificiais de luz, e do alto vemos um cenário venusiano de prédios espetados (...)"

Obrigada, Cristóvão Tezza!
(em Viagem, conto do novo Beatriz).

3.11.11

Drogas e efeitos

Uma xícara de café + corrida na esteira: surto de inspiração artística.

Duas xícaras de café + ida à biblioteca: taquicardia, paranoia.

Uma bacia de suspiros sozinha OU mar + caipivodka no meio da tarde: pressão baixa, leseira prazerosa.

Antiácido no meio da madrugada: desmaio, visões lisérgicas, suor intenso.

Fissurar o dedo em uma bola de basquete: conversa com seres de uma realidade paralela de fundo vivamente laranja.

Tirar mais de duas ampolas de sangue para exame sentada (em vez de deitada) OU retirada de soro intravenoso após 4 dias: desmaio, percepção alterada de passagem do tempo, sequência de sonhos com trama.

Verão carioca: tonteira, falta de ar, leseira não prazerosa.
Quando se é um corpo muito grande, a ideia de não ser alguma coisa (malvado, por exemplo) começa a perder o sentido. Simplesmente falta espaço de manobra suficiente para você não ser aquela coisa que já declarou não querer ser (malvado, no nosso exemplo). E você precisa se mexer, não é mesmo? Você quer coisas, não quer? Pelo simples ato de se mexer e ir atrás, você esbarra nos móveis e derruba todas as suas antigas intenções no chão.

O parágrafo acima é minha ideia de crítica ao desbaratamento do Google Reader em prol do Google+.

20.9.11

Minha primeira pichação


Exibir mapa ampliado

A Prefeitura autorizou a construção de um prédio residencial num terreno arborizado e, há 20 anos, murado, junto a um paredão de rocha. Começou a rolar uma movimentação pseudo-ecológica, encabeçada por uma candidata a vereadora e donos de apartamentos de frente pro terreno que teriam a vista bloqueada, que pretendia impedir a construção. As manifestações incluíram pichar o muro com desenhos de árvore, frases em tinta verdinha ("Futura escola de jardinagem") e desenhos de criança, além de nomear o lugar de Bosque de Botafogo. Também foram postados cartazes oferecendo faixas e adereços de protesto para pendurar nas varandas por preços que iam de R$29,00 a R$54,00, se não me engano. Algumas pessoas compraram.
O movimento fracassou. O muro ficou sendo de ninguém, o prédio está quase pronto. Manifestei-me então também.

Um trecho para acompanhar a imagem:

"He looked at the granite. To be cut, he thought, and to be made into walls. He looked at a tree. To be split and made into rafters. He loooked at a streak of rust on the stone and thought of iron ore under the ground. To be melted and to emerge as girders against the sky." (Howard Roark em The Fountainhead, de Ayn Rand)

Gosto muito da Ayn Rand e concordo com muitas coisas que ela diz, embora ache que a iniciativa individual não resolva tudo e que as pessoas têm sim que aceitar coisas do governo desde que isso não se constitua numa relação de eterna dependência ou de troca de favores (e é sempre aí que a porca torce o rabo).

26.7.11

Por que o Laerte se veste de mulher

Paralelamente à matemática necessária ao OWNED, meu livro novo, estudei programação por diversos métodos desengonçados, nenhum dos quais consistiu em aprender uma linguagem de programação o suficiente para criar um programa de computador; mas entendi a alegria da recursão (ou recursividade) computacional. Se eu precisar te explicar "papel", posso escolher dizer que é uma "pasta fibrosa feita de árvore moída", mas primeiro tenho que ter certeza que você sabe o que é "árvore", "pasta", "fibrosa" e "moída", porque o conceito que preciso te explicar é recursivo – depende de objetos previamente definidos a cuja memória você vai recorrer. (Discute-se se todo conceito é assim, mas nem vou comprar essa briga.)

Tentei criar um livro que pudesse ser lido mais de uma vez. Isso é uma experiência comum para leitores: ler o mesmo livro de forma diferente a cada leitura. As memórias, não só de suas experiências pessoais como a da própria leitura do livro, interferem numa segunda (ou terceira ou enésima) leitura. Um livro cujo texto é materialmente diferente a cada vez, como o meu, só exacerba essa característica.

Agora vou pedir para você visualizar o yin, o princípio feminino-negativo. Negativo não como ruim, mas como lado B, passivo, receptivo. (Ok, estou começando a soar hippie demais para o meu próprio gosto, mas fiquem comigo, por favor.)

Aí voltamos a toda a história da literatura (de toda arte) e à mulher como a tela em branco em que a humanidade projeta seus desejos, metas e medos. Como expressar algo que só vive na entrelinha? Existe autoexpressão no caso do passivo?
Não vou explicar demais e estragar a experiência, mas se você é absolutamente refratário à menor revelação de enredo ou explicação de obra, é melhor pular para o último parágrafo.

A recursão é um jeito de fazer a entrelinha falar. Cada final do livro é projetado para criar uma ligeira sensação de insatisfação, o que deve fazer o leitor ir atrás de outro final. Ao ler o livro uma segunda vez, ele vai satisfazer algumas de suas dúvidas quanto ao primeiro caminho, mas vai descobrir novas insatisfações e querer tomar outros caminhos para ler ainda outro final. Quando achar que está quase entendendo do que se trata, vai tomar outra puxada de tapete: as regras subjacentes são ainda mais complexas do que pensava. E assim por diante.

Tinha uma brincadeira que eu fazia enquanto trabalhava no OWNED: "é programação orientada a mulher-objeto" (assim como o nouveau roman é "romance orientado a objetos"). No entanto, elas são o conteúdo e a razão de ser do livro. Meu André nunca é caracterizado fisicamente, e sua caracterização psicológica depende da mulher que ele corteja e das escolhas que você fez por ele. André, como narrador que é, está irremediavelmente ancorado ao próprio umbigo; nunca pode ver as moças conversando sobre ele em sua ausência, dizendo o que realmente pensam.

Ou seja, André trabalha no escuro, projetando aquilo que cada mulher deve querer dele e tentando oferecer isso (ou não). Por sua vez, cada moça forma sua própria imagem de André; a maioria delas não está irremediavelmente interessada por ele; segundo as escolhas dele, ela simplesmente não vai estar mais disponível. As mulheres que André vai encontrando ao longo de suas tentativas têm suas próprias vidas, nas quais ele se integra das mais variadas formas; às vezes como acessório, às vezes como peça fundamental, às vezes até como intruso. E apesar de estar tão ancorado ao ponto de vista do narrador quanto o próprio, o leitor que jogar suficientes vezes vai perceber que várias moças se conheciam independente de André.

Acho que as leitoras vão gostar mais do meu livro do que os leitores no sentido de que, apesar de fantasioso, ele apresenta a vida como ela é, não como deveria ser (Nelson Rodrigues, gênio). A bananização dos protagonistas masculinos de chick lit como seres incondicionalmente atrelados a uma única mulher, incapazes de acessar pornografia, achar chato um jantar romântico ou mesmo de mudar de ideia se a mulher em questão é consistentemente parva e/ou maléfica enerva a mim e a minhas amigas. Com OWNED, em vez de viver mais uma vez a angústia de não saber o que um rapaz de que gostam está pensando, como em tantos livros recentes para adolescentes e jovens adultas, as mulheres podem viver a angústia de não saber o que a mulher desejada está pensando dentro da pele do tal rapaz. É um livro em prol da compreensão mútua. Afinal, ambos os sexos têm mais é que aprender a ler nas entrelinhas e não acreditar em toda manha e eufemismo do outro (e do mesmo).

12.7.11

Seventeen

Vi numa livraria o Axolotle atropelado, de Helene Hegemann. Como axolotle é um bicho que me seduz, peguei para ver qual é e, vejam só, era um livro escrito por uma autora de apenas dezessete anos. (Eu mereço.)

Volta e meia surge a pauta da valorosa autobiografia de jovem rica rebelde. Os franceses têm a Lolita Pille (Hell Paris). Os italianos têm a Melissa Panarello (Cem escovadas antes de ir para a cama). Nós, brasileiros, temos a Maíra Dias Gomes (Fugalaça). Os americanos foram mais espertos e transformaram a deles em franquia e série de TV (Cecily Von Ziegesar, com a Gossip Girl). Agora os alemães também têm a sua.

De todos esses, só tive paciência de ler de cabo a rabo o Hell (agora onipresente no RJ naquela fotografia linda da peça). Sim, comprei o livro, gastei meu suado dinheiro com ele. Eu estava numa idade mais inocente... esperava na verdade destrinchar os critérios que a mídia usa para elogiar alguma coisa; e descobri que não havia explicação possível senão a da pauta, porque aquilo era ruim demais da conta. Quer dizer, não é denúncia nem novidade que adolescentes ricas entediadas brinquem de sexo, dorgas, roquenroll e consumismo. A linguagem não me trouxe nenhum arrebatamento ou desconforto. A história é desconjuntada. Por que, então, a mídia dá atenção a esse tipo de coisa? Por que as meninas compram e leem fascinadas? Porque é fofoca, vontade de saber da vida dos outros, de se identificar legitimando e/ou de viver por procuração. Tipo um romance de banca para a nova geração, com baboseiras ligeiramente diferentes e expectativas irreais idênticas.

Nessas autobiografias de moça rica identifico uma dicção autodeslumbrada e um forte pendor borderline. Lendo esse tipo de literatura fico com a sensação de que, se soubessem que ninguém falaria delas depois (bem ou mal), as autoras-personagens não achariam nada do que fazem tão excitante assim. Não teriam ânimo para escrever.

Mas agora vamos falar de livros bons, ok? Livros bons.

A japonesa Risa Wataya também lançou um livro aos 17 anos. Não sei da situação social dela, nem do quanto é autobiográfico. Japoneses são misteriosos. Já começa por aí.

Para ler os livros dela você tem que saber japonês, francês, alemão, italiano ou coreano. Eu falo francês. O Install ela lançou com dezessete anos. É sobre uma adolescente e um menino de dez anos que lançam um serviço de chat sexy online em que os dois fazem as garotas. L'appel du pied (algo como O chamado do pé), cujo título original é Keritai Senaka (algo como As costas que você quer chutar), é sobre uma garota que descobre que está apaixonada por um estafermo da escola quando sente impulsos irresistíveis de dar uma voadora nele pelas costas. ISSO é bom. Li ambos e de vez em quando dou uma relidinha. Recomendo.

Quanto ao axolotle: o melhor romance adolescente alemão que li nos últimos tempos não tem nada a ver com realidade - não no sentido de reproduzi-la. Também não foi escrito por uma adolescente. Se chama A menina sem qualidades (por Juli Zeh). O título nacional faz menção ao romance de Musil, mas, ao fim do romance, as notas de tradução do ótimo Backes elucidam o título original, Spieltrieb (algo como Pulsão de jogo). Com efeito, é um livro que bebe muito da teoria dos jogos, tanto no tema como na estrutura. Ada, uma adolescente "não linda" e superdotada, que se proclama filha do niilismo, encontra seu parceiro de jogo em Alev, jovem totalmente impotente que, na falta de melhor passatempo, trava uma partida de lances sucessivos em que Ada, o professor Smutek e toda a sociedade são os peões. Ada começa a ficar à vontade no mundo com a possibilidade de ter uma identidade, finalmente, nem que seja a de peão, e daí em diante os desdobramentos me surpreenderam. Smutek também é um grande personagem, representando a perplexidade de quem ainda tem uma história pra contar frente ao jogo que tomou conta de tudo.

Peguei A menina sem qualidades na livraria porque achei a capa diferente, me chamou a atenção. Depois a orelha. Depois gostei do que vi ao folhear. Depois de comprado, me deparei com teoria de jogos pelo livro todo e me apaixonei. Foi uma grande coincidência, já que estava estudando exatamente isso para escrever meu OWNED. Em suma, leiam A menina sem qualidades. Leiam ele e deixem o axolotle em paz.

6.6.11

Owned e matemática

Como preciso explicar pro meu editor o que ando fazendo, pensei em escrever um texto corrido sobre como está o trabalho com o Owned, meu livro novo. É um livro que se bifurca em mil caminhos. A cada passo você vai ter escolhas, decisões a tomar; e essas escolhas vão ter consequências. O personagem principal é um técnico de informática viciado em videogames cuja vida começa a virar um videogame. É um livro para jovens acima de 18 anos e fala sobre mulher, amor e matemática*.

No início, estudei um pouco de teoria dos jogos para tentar simular a existência de leitores como jogadores. O fato de o leitor estar jogando contra ou junto comigo seria determinado pelas próprias escolhas dele. Claro que o fato de eu determinar quais escolhas do leitor seriam possíveis cercearia a liberdade absoluta, mas eu também não tenho liberdade absoluta, senão gssmj iuoius jk kelkj sjdkfnsd tatah. Macacos batucando máquinas de escrever dificilmente escreverão Hamlet, e um pouco menos dificilmente "um" Hamlet. Então se eu estou cerceada pelas baixas probabilidades de você entender totalmente meu output cru, você também está.

Conversei com a Diana de Hollanda sobre matemática num lançamento de livro e ela me contou das aulas de lógica que andava assistindo. Conversei com o professor, Oswaldo Chateaubriand, e ele gentilmente me deixou frequentar a aula. Depois que se inteirou de como era o livro e da matemática que já havia nele (principalmente teoria dos jogos), ele me encaminhou para o estudo de lógica dialógica.

Fazendo um grande parêntesis, eu não conseguia explicar para as pessoas porque eu andava necessitando de matemática e, depois, em que estava me ajudando estudá-la. E vou fazer mais uma tentativa agora.

Voltei a estudar matemática quando quase terminava de escrever o livro. Por quê? Para descobrir do que estive falando o tempo todo. Frequentei a aula e descobri que há abordagens "construtivas" e "não construtivas" à matemática - assim como em alguns finais de Owned, eu e o leitor "perdemos" (não construímos uma narrativa válida). Às vezes, tive que escrever trechos em que eu "perco" (simulo perder), o que significava escrever cenas que faziam sentido para a série de escolhas que as precederam mas me desagradavam pessoalmente. Nos trechos em que eu "ganho" (simulo ganhar), há um final que eu me diverti em escrever, mas com o qual o leitor pode se sentir sacaneado.

Para além do fato de o livro todo ser uma simulação, digo que o leitor pode se sentir sacaneado porque o leitor real pode muito bem gostar do final que meu leitor simulado acharia uma traição. Na publicação e na leitura - quando o "programa" rodar todo na cabeça de leitores reais - sei que vou me surpreender, mas não sei como.

Uma ajuda que a lógica me deu foi para deduzir as regras do meu próprio jogo. Há uma brevíssima instrução de como jogar no começo de Owned (meu pacto narrativo) que pode se passar por regra, mas o que estou chamando de regra aqui são os pressupostos ocultos com que trabalhei ao escrever. Por exemplo: "cada escolha do leitor é uma jogada; como autora empírica, eu posso cooperar ou trair". Só que fui tão longe escrevendo que não tinha percebido que minhas regras tinham mudado, casado e tido filhos. Uma vez colocando as regras (as antigas e as novas) no papel, ficou mais fácil escrever as últimas linhas.

Sim, as últimas linhas. Bem, eu estava batendo cabeça com (para?) completudes, era isso. Eu tinha começado com regras muito fortes, inexoráveis, e precisei flexibilizá-las para fazer caber a variedade mirabolante dos casos que tinham surgido (os caminhos que eu tinha escrito) depois de criá-las. Ou seja, eu sentia minha canoa furada; a matemática me ajudou a entender que talvez não haja barco perfeito e que não há canoa certa, há mais a canoa certa para o rio em questão. Fato: estou trabalhando no último trecho.

Enfim, estou estudando a tal lógica dialógica e descobri que era mais ou menos disso mesmo que eu estava brincando. Aliás, esses dias me passaram também um jogo de cartas relacionado.

Eu não sabia onde estava me metendo. Não sabia onde meu livro ia me levar. Mas certamente não parti da ideia de escrever um livro bobinho, caça-níqueis, frívolo ou experimentalesco sobre videogames. A ressalva é porque, no Brasil, o adjetivo "sério" está grudado como uma craca ao conceito muito feliz de "não picaretagem". Só que as demais acepções de "seriedade" vazam como uma caneta estourada para esse rótulo e contaminam público e crítica de uma terrível incapacidade de rir e brincar. Nesse sentido não-picareta eu quero muito ser uma autora séria, mas também não quero abrir mão do lúdico, pode? 'brigada. É que por mim eu podia jurar que não estou falando sozinha.

Depois vem um artigo, juro que menorzinho, sobre programação.



* Narrador d'O homem que calculava, de Malba Tahan

25.5.11

Filha de portugueses, ela cresceu no Morro da Conceição, no centro do Rio, e foi tirada da escola na sétima série, a contragosto, para começar a trabalhar. Ela gostava de estudar e sua escola, pública, tinha qualidade.
Esse post lista várias palavras usadas pela minha avó, que praticamente me criou (e não era nada educadinha). Ela morreu em 2004, e esses termos, difíceis de se ouvir hoje em dia (de pessoas jovens, especialmente), ainda ressoam na minha cabeça. Quer dizer, minha avó não estava sendo conscientemente política ou tenaz em insistir em seu uso na linguagem, mas admiro-a por ter sabido manter uma expressão verbal própria mesmo assistindo novelas, fazendo palavras cruzadas, conversando com gente de toda idade e procedência.
Ela usava muito substantivo, pouco advérbio, verbos originalíssimos, bastante xingamentos. Eu uso muito advérbio falando, respondo "sim" em vez de "é", uso futuro do presente ("eu irei") e, quando criança, esganava quem usasse diminutivos para se referir a mim. Eu fingia que não estava entendendo as palavras novas para que ela me explicasse, embora a maioria desse pra deduzir do contexto. A informalidade dela não me ofendia, porém; eu gostava dela. Hoje em dia, que estou mais emocionalmente ampla (hahaha), já sinto a dona Albertina em mim aflorar.

Apaixonada - Usado quando se está contando uma história. "Fiquei apaixonada" = "Fiquei tristíssima, magoada, hipersensível".
Cacófato - o horror da minha avó a cacófatos só era comparável ao meu por diminutivos. "Boca dela" era invariavelmente recebido com "Cacófato!" Acho que isso é porque meu avô costumava cumprimentar um certo amigo pelo nome completo, "Adolfo Dias", quando o via na rua, e fazer outras gozações do gênero.
Complicado - adjetivo para produtos culturais que estivessem fora do meu alcance intelectual. O gibi do Tio Patinhas era mais "complicado" do que o da Turma da Mônica. As palavras cruzadas que ela fazia eram mais "complicadas" que as que ela comprava pra mim. E assim por diante.
Debochada - insulto, quando ela desconfiava que eu estava sendo secretamente irônica por trás da minha carinha de anjo. Mas podia ser dito com camaradagem, num espírito de comadreria, quando o "deboche" era dirigido a outra pessoa.
Desmazelada - geralmente aplicado a mim. "Desleixada" não seria insulto suficiente. (Talvez um indício - etimológico, além das fotos de familiares e do meu nariz - de que nós descendemos de cristãos-novos.)
Esganado - guloso, que come demais
Escangalhar - quebrar alguma coisa
Engranzado - algo que foi entremeado ou metido de forma indevida e ficou preso (um livro na estante, por exemplo)
Enviesado - a palavra dela para "fisicamente inclinado" ou "torto" ou "de lado".
Grossinha - insulto.
Gulodices - nome genérico dos doces que ela se oferecia para trazer do supermercado: "umas gulodices".
Insolente - insulto.
Malcriada - insulto.
Marginal - qualquer bandido ou pivete
Miserável! - insulto.
Perra - insulto. Ver "Teimosa feito uma mula".
Petulante - insulto.
Rente - ela usava bastante esse advérbio
Ruim! - insulto geralmente dirigido a mim. Não era pronunciado "ru-ím", mas sim "rrrúim!"
Se mostrar - fazer alguma gracinha com o intuito de "aparecer".
Sextavado - palavra dela para "hexágono" ou "hexagonal".
"Tá virando hippie?" - insulto geralmente dirigido a mim. Aquele que se veste fora da norma.
"Teimosa feito uma mula" - insulto geralmente dirigido a mim
Vedete - Consideração em que tinha Carla Perez

* Se lembrar de outras, editarei o post ou farei outro

24.3.11

servidão voluntária

Em 2010, decidi arrumar um emprego. Sim, necessidade financeira, mas eu tinha perspectivas de dinheiro para breve; só que pela primeira vez eu sentia vontade de arrumar um emprego, em vez de arranjar "algo temporário que desse algum dinheiro", como antes.
Eu estava numa época da minha vida que parecia que tudo ia dar certo. Eu tinha um livro promissor para desenvolver e uma bolsa saindo para ele (o dinheiro de que falei). Mas eu escrevia/planejava uma ou duas horas por dia. O resto do tempo eu me via tomada por pensamentos obsessivos que se acumulavam sem quê nem por quê, o dia inteiro rodopiando na minha cabeça, e às vezes não deixavam nem mesmo que eu fizesse o que tinha para fazer (escrever, comer, viver). Também tinha o fato de eu ter me recém-formado em produção editorial sem ter assinado carteira nessa profissão (nem em outra). E a já famosa degradação de habilidades sociais, que em mim é forte, rápida e embaraçosa.
A verdade é que eu estava meio desconectada da humanidade, passando tanto tempo sozinha em casa. Ok. Verdade verdadeira agora: eu sempre fui meio desconectada da humanidade, e as experiências nas poucas vezes em que tinha estendido a mão foram negativas, levando-me a encontrar prazer em estar na torre de marfim. Ou nem em estar na torre de marfim: em estar comigo mesma.
Muitas pessoas que passam muito tempo sozinhas desistem logo no começo porque são uma autocompanhia insuportável. Começando cedo, eu ainda não era; e logo aprendi a evitar ser. Descobri que dá pra você podar seus pensamentos. Você não precisa dar crédito a eles só porque eles vieram de você. Dizer "eu rejeito isso", mesmo que tenha vindo de dentro de mim, é uma babaquice necessária para se tornar uma pessoa melhor, o que se reflete também (claro) na minha opinião sobre educação de crianças, como podem ler nesse post.
Cabeça vazia, oficina do diabo, pensei; se não dá pra ocupar o cérebro com o que devo ocupá-lo, então que tal um belo bode na sala pra você ver o que é bom?
E arrumei o dito emprego. Um de 9h45 por dia, para fazer algo de que eu gostava, cheio de pessoas interessantes, algumas das quais viraram minhas amigas do peito. Mas tinha que chegar lá de ônibus, acordar todo dia no mesmo horário, dormir todo dia no mesmo horário, comer aquela comida e passar por aqueles ordálios trabalhistas por que sempre se passa. Depois que voltasse pra casa, às vezes ainda havia ir à academia ou fazer supermercado - ambos lotados, porque todo mundo só pode ir depois do trabalho - e sempre o jantar.
Também tem o fato de trabalhar ser muito caro e... trabalhoso. Sempre ouvi e li relatos disso, mas ano passado vivi na pele. Além de todos os encargos trabalhistas planejando sua vida por você (Estado paternalista comendo teu salário), há o tempo e o custo de transporte (e todo mundo viajando no mesmo horário, e no sistema de transportes pífio do Rio de Janeiro), a roupa certa (comprei 4 blusas iguais e 2 calças pretas, mas logo tive que comprar mais peças porque elas sujavam e gastavam bem mais rápido, ou davam um puta calor já na primavera) e a despesa com comida (lancha-se, porque trabalhar dá fome, e pede-se em casa, porque dificilmente se aguenta preparar comida depois de 9h45 no batente).
Fato é que pouco a pouco os pensamentos obsessivos foram se acalmando por pura exaustão. A energia antes reservada a eles servia agora à literatura, mesmo que fosse "dos outros", mesmo que às vezes eu nem curtisse o conteúdo. E, quando curtia, dava um gás maior na divulgação e me sentia ótima quando o livro conquistava um espaço maior, ou quando a edição saía bonita, sólida (mesmo que digital), (quase) sem erros, porque ajudei a pegá-los.
Depois que comecei a trabalhar, mesmo com toda aquela falta de tempo, eu escrevi muita coisa. E muita coisa boa. Teve um enorme surto inicial de escrita que me impressionou; depois eu escrevia muito semana sim, semana não. Parecia que as novas experiências enxurravam coisas meio emperradas, antigas, canalizando-as para a ponta dos dedos.
O que atrai muita gente para a profissão de escritor é uma suposta autorização pra não fazer nada o dia todo. (Fazer nada incluiria ler muito e escrever parcimoniosamente, além de traçar os/as fãs e colegas mais jeitosos/as.) Digo que todo esse papo de morte do autor e fim do sujeito fizeram um bocado de sentido depois da minha incursão celetista. Olha, o paraíso é insuportável. Uma vez que você chega nele, não precisa nem te contarem: a princesa está em outro castelo.
Porque saí do emprego? Bem, eu disse que o celetismo era um bode-na-sala, e como todo bode-na-sala, ele teve que sair em algum momento. Dei-lhe um tapinha nos quartos e despachei ele pro deserto. Nada pessoal. Saí curtindo muito o trabalho, mas a cada dia o horário do emprego se tornava mais difícil de cumprir. O dispositivo estava vencido. Minha doença mental estava sob controle.
Tive outras doenças ano passado também, físicas e desagradáveis, e, embora não acredite que toda doença é psicossomática (hohoho, Löis Lancaster...), essas também passaram. Confirmei que minha cabeça estava em desordem por ter passado tempo demais consigo mesma sem alimentação externa. E a qualidade da alimentação externa com que entrei em contato no trabalho foi tão alta que houve, olha só, reciprocidade. Eu gostei tanto das pessoas quanto elas de mim, eu fiz tão bem a elas quanto elas a mim. Uma sensação difícil e esparsa na minha vida até então.
Estar sozinha pra mim sempre foi o normal. Sou filha única, sempre morei em prédios sem playground e com poucas crianças. Me estranhava com a maioria das da escola. Socializava mais com os primos, quase todos meninos. Decidir trabalhar em casa, escrevendo, só deu continuidade a isso. Enxerguei esses anos um monte de coisas pelo mero fato de estar prestando atenção em vez de socializando; mas o preço dos insights induzidos pelo isolamento foi salgado. Pelo menos, quando entrei em contato aberto com outras pessoas - precisando delas, é a verdade - eu tinha algo a dar a elas. De um jeito que vai muito além de sexo, troca de favores ou coisas assim. Eu colocava benesses na frente das pessoas com um "use isso, por favor" estampado na cara - eu precisava ver meus caminhos de autodescobrimento seguindo seus caminhos, em vez de brincando de PacMan dentro da minha cabeça.
Eu também cheguei num ponto tal em que o processamento em segundo plano não estava mais bastando à escrita. Não estava dando vazão. Eu precisava voltar ao esquema full time - agora, com trocas frequentes com a humanidade. Vamos ver como isso anda.

9.2.11

Christine, o carro rabo-de-peixe assassino

Black Swan é tosco como um filme de Walter Hugo Khouri. O negócio é que eu gosto dos filmes do Walter Hugo Khouri.
Porra, trata-se de balé, ou seja, quase ópera. Tem que ser um filme exagerado. Quando o Aronofsky falou de vale-tudo em O lutador, todo mundo achou magnífico. Ou melhor: ouvi, naquela época, algumas reclamações de simbolismo pesado (The Ram = Cordeiro de Deus, destruição do templo = Randy quebrando o supermercado etc.). Mas é isso mesmo. Sempre foi, desde Pi. Aronofsky pesa a mão de propósito, e escolhe temas bem grandiosos e grandiloquentes, e filma tudo com visual extravagante. O que me admira é como essa extravagância se expressa - no roteiro e no visual - de formas diferentes em cada um dos filmes.
Tem gente a quem essa extravagância simplesmente não tem como agradar. Respeito. (Bom teste: se você gosta ou mesmo tolera ópera, vá ver). Mas tem gente que entra na sala de cinema esperando ver 1) sutileza 2) homoerotismo gostosinho 3) grande mistério revelado no final (vulgo I see dead people). Não! Você vai ver TERROR. Você vai ver PILHA ERRADA e PARANOIA. Você vai ver INVESTIMENTO LIBIDINAL EXTREMO NA ARTE. E você vai ver a culminância linda e terrível de tudo isso. Se isso vai fazer você pensar melhor e retomar o curso de publicidade ou ter uma catarse, é por sua conta.
Com isso, não estou dizendo que exagerar é acertar. Quer um filme kitsch ruim? Moulin Rouge. Outro (não vale musical! - ok): Scott Pilgrim*. Defendo que o kitsch tem seus usos, mas é muito fácil perder a mão e certamente não agradará a todo mundo. O kitsch lida com elementos de alta massa nuclear, é preciso ser bem mais disciplinado do que quem trabalha com elementos seguros, aprovados pela tradição e consagrados pelo uso. O Aronofsky geralmente acerta.


*E doi dizer isso, já que curto videogames, mas erraram a mão sequer em considerar fazer o filme. O quadrinho é um pouco melhor, especialmente no começo, até porque no início nem era tanto sobre games e sim sobre humor indie. Mas divago.

1.2.11

Frio

Meu sítio na serra se tornou um depósito de roupas de frio completamente inúteis no Rio de Janeiro. De vez em quando eu me dou conta do quanto elas ajudaram a formar a minha personalidade. Por ordem cronológica (minha cronologia, não das roupas):

- A balaclava da minha avó, rescaldo da lua de mel dos meus pais (sim, com a sogra) em Bariloche, que eu usava para brincar de ninja e espiã no sítio.
- O xale amarelo da minha bisavó, que eu usava para fazer a velha em brincadeiras.
- A luvinha infantil de lã, pseudo patchwork, mais um presente maravilhoso do meu padrinho, que eu usava para manipular bolas de sabão pelo sítio, fosse ou não inverno.
- Pantufas horrorosas e imprescindíveis. Quando começaram a surgir em formato de bichinho, no final dos anos 90, eu requisitei as antigas - minha mãe ficou com as de joaninha. Eu não gostava dessas infantilidades.
- O casaco de neve branco e azul da minha avó, três números maior, que usei direto no Reino Unido em 2000 para compor um visual de flygirl clubber (e não morrer de frio).
- O protetor de pescoço que salvou minha garganta na Escócia em 2008, com aplicação de um logo de sorvete, obtido no Chile pela minha mãe, que preferiu participar do concurso de quem comia mais sorvete de biscoito com meu irmão postiço de 14 anos a descer a pista intermediária comigo vezes sem conta ouvindo techno.

O clima lá está mudando. Agora temos mosquitos no verão. E em janeiro sempre choveu o tempo todo, mas raramente com essa intensidade. Meu canto na serra desta vez foi poupado, mas num ano anterior (recente) árvores centenárias caíram (algumas em cima de telhados) e lascas gigantescas deslizaram das montanhas. Vou para lá em breve, e devo ficar um tempo. Mas com internet.