Minha escola era o máximo. Tivemos um professor nissei de informática que deu o básico do BASIC na 2a série do fundamental; na falta dele, deixavam a gente ficar jogando videogames sob a vaga desculpa de "aprender inglês" e tudo isso consistia em um tempo de aula pós-recreio de pura diversão. Ou talvez não apenas diversão: o craque em construir cidades funcionais no SimCity, Rodrigo Mandarino, mais tarde concluiu arquitetura na UFRJ com média 10 e hoje trabalha em um escritório famoso.
Quando tínhamos 12 anos (6a série), fomos instados a fazer campanhas - sim, nós mesmos tínhamos de criar e implementar, valendo nota - sobre cigarro, sexo, álcool, drogas, reciclagem, ecologia... Lembro do esquete antifumo que escrevi: cinco adolescentes estavam sentados à mesa depois de uma refeição, fumando "cigarros" (canudos de papel cheios de talco; havia que se soprar para fora; uma das integrantes se esqueceu disso e tragou o talco, com resultados previsíveis). Entrava eu com uma túnica de bruxa de Halloweens passados, a balaclava ("touca ninja") de lã da minha avó e um cabo de vassoura com uma foice de papel prateado e ceifava todo mundo. Os fumantes tombavam sobre a mesa, um por ceifada. Para arrematar, eu pegava um dos cigarros de talco e tirava uma bela baforada. Havia falas engraçadinhas, mas não me lembro mais delas.
Escrevi também a versão de Pipoca (da Xuxa) e do jingle de guaraná que adaptei para, em vez de exaltarem as virtudes da pi-po-ca, falarem mal de ci-gar-ro. Nessa mesma ocasião, cantei ambas a capella num microfone.
Nada disso foi filmado e, se existissem celulares com câmera naquela época (1995), eu certamente não teria tal desenvoltura. E nenhuma dessas palhaçadas impediu meus colegas já fumantes de perguntar se eu não tinha algum cigarro de verdade na minha cenografia improvisada (eu tinha, e cedi).
Minha escola era oficialmente laica. Mas quase pagã na sua ânsia de nos preparar para a vida como ela é com uma naturalidade aterrorizante. Apenas, em vez de contar fábulas sobre meninas que param para conversar com lobos, minha escola preferia nos assustar com ciência e experiência pessoal.
Foi nessa vibe que aconteceu a melhor e pior palestra escolar de todos os tempos. Fomos convocados sem aviso certo dia. Entramos no auditório e anunciaram que receberíamos ex-alcoólatras do AA.
Primeiro a diretora e a coordenadora falaram algumas palavras-padrão sobre os males do fumo e do álcool. Como o álcool era droga e era perigosa e viciava, mesmo sendo legalizada. Que a pessoa viciada em álcool já não consegue funcionar sem álcool; isso se chamava dependência. E, quando tentava parar, não conseguia. Ficava tremendo.
Então entrou outra pessoa, do AA, para explicar um pouco da filosofia do AA: evitar o primeiro gole, um dia de cada vez. E que a pessoa que se torna ex-alcoólatra jamais pode pôr uma gota de álcool na boca de novo, senão entontece e volta tudo.
Aí entrou o testemunho. Era um cara bonito, grande, bronzeado de praia, uns 35 anos, louro, de cabelos amarrados num rabo de cavalo, mas o rosto dele era muito gasto, como se tivesse passado por poucas e boas. Como se tivesse desinchado, eu diria agora. Um sotaque francamente carioca zona sul. E foi isso mesmo que ele falou. Que, como nós, tinha ido a boas escolas na Zona Sul do Rio de Janeiro. Que tinha começado a beber para tomar coragem para ir falar com as meninas - e deu certo. Mas dali a pouco, ele estava bebendo pra tudo - pra estudar para a prova, pra tomar coragem pra prova, pra esquecer os problemas -, e em quantidades cada vez maiores.
O homem olhava do palco para a plateia e via: a maioria dos alunos admitindo estar impressionada, outros tentando olhar pro colega com risinhos e exorcizar o medo que aquela história estava dando. Vendo essa reação mista, ele começou a falar MUITO alto no microfone, e a piscar muito para evitar as lágrimas. Ele tinha que atingir os outros, os candidatos a rebeldes.
Ninguém, nem da família dele, tinha falado dos perigos do álcool pra ele. "Até incentivavam" - claro, coisa de macho, de homem de verdade. Logo eram quinze chopes para ele começar a se sentir bêbado. Ele precisava beber cada vez mais. A toda hora. Na faculdade. No emprego. Para levantar de manhã. Até que começou a perder tudo. Emprego primeiro. Depois, amigos.
Nesse ponto - gritava ele - ele já não conseguia mais parar! Estava VICIADO EM ÁLCOOL!
(E a criançada agora transfixada, olhos pregados nele. A coordenadora e a diretora nervosíssimas, agarrando disfarçadamente as pontas bege das cadeiras.)
"Minha família me abandonou! Tentei frequentar um psicólogo, mas logo eu voltava a beber. Depois eu tentei buscar ajuda na religião. A Igreja Católica não me curou. Tentei de tudo! umbanda! espiritismo kardecista...! bati até a porta da Igreja Universal!" -- e aqui, todos os meus colegas viraram as cabeças para mim, que sabiam ser da Igreja Universal; balbuciei alguma coisa, ninguém ouviu -- "Mas não deu certo! Não deu certo!! Nada adiantou! Só os Alcoólicos Anônimos. Seguindo os doze passos..."
Na Igreja Universal eu vivia ouvindo testemunhos no altar, alguns de ex-alcoólatras. Mas eram relatos hesitantes, molengos - história mal narrada, protagonistas pouco convencidos do valor dela. O sujeito no palco estava desesperado para passar a mensagem. Ele tinha visto o inferno. Ele não estava representando. Não queria agradar ninguém fazendo aquilo. A gente era como uma volta ao passado para ele, a encarnação de sua juventude perdida por falta de alerta. Bem, que não fosse por falta de alerta.
Achei que iam ter que tirar ele dali à força. Mas, se bem me lembro, pouco depois ele fechou o discurso apropriadamente ("estou sóbrio há um ano e meio") e foi muito aplaudido.
Creio que uma grande limitação da educação religiosa é achar que pega mal para crianças inocentes saberem esse tipo de coisa. Escola, igreja e família religiosas muitas vezes fingem que podem manter as crianças no escuro, em vez de se colocarem como fonte de informação confiável e útil sobre drogas e sexo. É preciso não esconder a parte boa e não esconder a parte ruim. Não vai evitar que a pessoa use drogas ou faça sexo, mas vai ajudá-la a ter expectativas realistas quanto a essas experiências, e a ser madura o suficiente para identificar um jeito responsável de passar por elas (e desfrutá-las, se for o caso).