4.6.03

Eu quero contar uma coisa

Porque eu faço sempre a mesma coisa? Eu dou sempre uma chance à minha mãe, nem que seja me dizendo que vou me aproveitar do dinheiro e não da companhia dela...
Ontem fomos alugar Harry Potter e a Câmara Secreta. Eu vi o um, queria ver esse também. E é um ótimo alimento para o meu lado criança.
Minha mãe pegou o DVD, foi pro balcão. Nisso, eu vejo um anúncio da continuação de "Cubo" (sabe "Cubo"?): "Hipercubo"!!!
"Eu tenho que ver esse filme"!
Fiquei esquadrinhando a seção de DVDs, neurótica, querendo saber se já tinha chegado... Fiquei um tempo, nisso ouço minha mãe me chamar, já de saída. Corro até lá (passando por um cara) e entro no carro.
Silêncio no carro. Nisso, quase lá no Humaitá, minha mãe pergunta:
- Você não viu aquele cara olhando para você?
Eu estranho.
- Não, não vi. Que cara? Eu vi um anúncio da seqüência daquele filme... Sabe aquele filme, "Cubo".
- Não...
- Você NÃO viu "Cubo"? Bom, mas é um filme fantástico, em que as pessoas acordam presas num cubo... aí tem armadilhas mortais, e as habilidades de cada um são essenciais pra eles poderem sair... Acaba todo mundo morrendo, menos uma pessoa, que é quem sai do Cubo.
- Ahn...
- E aí tinha a seqüência, fizeram um "Cubo 2", mas em vez de ser "Cubo 2" é "Hipercubo". Porque é em 4 dimensões! Logo, as armadilhas devem ser piores! (Ela não entendeu nada.) Bom, mas de qualquer modo, eu fui procurar e não chegou...
- Então você não viu o cara??
Porra.
- Não, mãe, não vi.
- Simone! Tinha um cara na videolocadora te olhando muito! Ele ficou te olhando... Ele tava te olhando muito! Você não viu? Ficou te olhando direto!
- E daí?
- Um cara lindo! Maravilhoso! Você não viu?
Aí eu lembrei, devia ser o tal cara com quem cruzei na saída. E decididamente, não tinha nada a ver. Tinha cara de escutar, não, ir em show de Jorge Vercilo.
- Não, não gosto de caras bonitos.
- Ele te olhou, ficou olhando... e tinha um carro igual ao meu! Um Gol, só que o dele era preto...
Eu faço uma cara de desgosto. Minha mãe vive num mundo cor-de-rosa. O ideal dela é marido-rico-e-bonito-pras-amigas-ficarem-com-inveja. Bonito e com carro. Isso já seria horrível mesmo que eu fosse uma "garota normal", a cobrança, mas sendo como sou, é um ordálio.
Ah, e detalhe, eu tenho namorado. E ela sabe que eu gosto dele. Mas e daí? Ele não tem carro e mora na Tijuca... e não é Padrão Globo, é exótico, tem cara de árabe (a mãe dele é do Acre e o pai dele parece com o Marlon Brando...). Quase sou compelida a pedir desculpas, mas é disso que eu gosto.
Joguei isso na conversa e minha mãe começou com aquela conversa de personagem de Manoel Carlos e Domingos de Oliveira de que "fidelidade é voltar sempre pra mesma pessoa" (se bem que ela não foi tão longe. Ela disse que):
- Apesar de estar namorando, você não está proibida de "admirar" os outros caras.
E mais:
- Isso é a essência do carioca!
Isso me deu um ódio, que eu explodi:
- Eu odeio esse lugar! Porra! Não gosto de praia, não gosto de carnaval, gosto de dia nublado, odeio quando furam o sinal, abomino jeitinho, odeio quem fuma em shopping, e não admito - eu não admito! - esse negócio de ficar olhando "pras bunda das mulé"!
Ela cantou um pedaço da música da Marina que fala dos cariocas (que bate com algumas coisas que falei). Me acalmei.
- Se isso é ser carioca, eu vou me mudar pra Londres.
- Ah, mas é assim em todo lugar.
- Não é não. Lá é diferente. Eu sei porque eu fui. As pessoas fazem outras coisas, mas não me incomodam tanto quanto isso!
(Agora lembrei, em Londres: o lixeiro me parou e disse que me via passando todo dia, que gostava de mim. Foi um doce. Eu não gostava dele, mas parei e fiquei conversando porque o sentimento era genuíno. E o italiano da boate? Parecia uma mistura do cara que faz "Angel" com o cara que fez o Matteo naquela novela Terra Nostra. Falava um inglês horrível... Pegou na minha mão só depois de um tempo... Dançou comigo de rosto colado numa boate de turista... Super respeitoso... Também naquela viagem, a suíça gordinha começou a namorar com um negro lindo. Estava extasiada.)
Ela ficou me acusando de ser "tímida" (que nem aquele cara ridículo, amigo do meu pai). Também não sou tímida... só fico tolhida porque ninguém vai entender meu ódio.
- Mãe, você não me conhece. Eu já passei dessa fase. A Monica está nessa fase. Ela fica achando que, quando os caras falam com ela, é por causa da roupa dela... tá entendendo?
- Tô.
- O que me incomoda é que eu não quero que o cara chegue e me considere apenas como "mulher". Porque que ele não chega pra um homem e solta: "Seu advogado", "seu cara de terno" e tal? Porque a primeira coisa que o cara vê em outro cara é: não é mulher. Logo, ele não vai olhar pra ele procurando bunda, peitos... tentando medir, ver se é "bom", e se for bom, passar uma cantada, buscar o olhar dela! Tá entendendo? Primeiro, eu sou "mulher". Depois, um "ser humano". Eu quero que um cara olhe pra mim e pense: "poxa, um ser humano! Igual a mim, portanto não vou tratá-lo diferente do que eu gostaria de ser tratado"! O cara vê uma forma, se for feminina ele presta atenção, se for legal ele desrespeita. Foda-se se eu tiver sentimentos ou alguma coisa na cabeça. É assim? Eu não quero que seja assim. Às vezes, preferia ser feia.
Ela ficou calada. Não por muito tempo, mas ela nunca havia pensado nisso. Do mesmo modo, na cabeça dela, "filha mulher" é pra casar com "bom partido" e não pra pensar... quer dizer, se quiser escrever um livrinho de vez em quando é bom, faz propaganda dos seus "dotes intelectuais"... mas nada de levar essas ideiazinhas para a vida prática.
As pessoas se prendem a costumes velhos e ultrapassados. Quando alguém vem com uma idéia nova, é um sufoco. Mas tudo bem. É pra isso que estamos aqui.