3.8.06

No escuro

Eu encomendei um livro de cada principal autor de ficção científica para ver se me interessavam. Que pecado, todos os que eu considerei "principais" só existiam em sebos. Comprei-os assim mesmo, no escuro, e até agora estou adorando. Um deles foi Os três estigmas de Palmer Eldritch, de Philip K. Dick, e outro Os túmulos de Atuan, de Ursula LeGuin.
Este, da LeGuin, não é bem sci-fi. É o volume dois de uma trilogia em terras mágicas. Parece um pouco com Marion Zimmer-Bradley (sem tanta putaria), um pouco com Tolkien (sem ser tão arrastado), mas um bocado com os Livros da Magia de Neil Gaiman.
É a história de uma menininha, Tanar, que é arrancada de sua casa por um culto para se tornar a sacerdotisa Arha, "a Devorada", a serva dos deuses das trevas, os Sem-Nome. Ela vai crescendo no meio do deserto árido de Atuan, sobre as Tumbas, entre outras meninas e mulheres (o culto só tem mulheres e servos menores eunucos). Já crescida e com os ritos todos na cabeça, ela encontra um homem andando pelo labirinto proibido das Tumbas, em que habitam os deuses Sem-Nome; por essa afronta ela deve matá-lo, mas por algum motivo não quer fazer isso.
Soa bobo, mas há coisas impressionantes no romance. Não é arrastado e descritivo como Tolkien; não tem romance entre Tanar/Arha e o homem do labirinto, embora a sinopse sugira isso; a confusão na cabeça da menina, criada naquele ambiente de gente doida, é passada de forma bem clara. Não se gasta quase nenhum espaço explicando os rituais, mas sim a "vida ascética" das sacerdotisas e suas pequenas alegrias e atritos. Os conceitos e motivações em que acreditam os personagens são passados sem artificialismo. Tanar/Arha não é nem mocinha inocente nem temptress-de-negro: ela é uma pessoa tentando achar o seu caminho, seguir sua intuição, e errando. Ela é mimada, infeliz, rancorosa, impulsiva, um monte de coisas. O "homem do labirinto" também é bem construído.
Uma coisa que me irrita nos romances que vejo por aí não existe nesse. A opinião sobre os personagens se forma na cabeça do leitor antes de ser "verbalizada" por Tanar/Arha. Por exemplo, no ponto em que Tanar/Arha tem o insight de que a sacerdotisa Kossil é uma filha-da-puta, você já entendeu que Kossil é uma boa duma filha-da-puta governista que todo mundo do livro odeia pelo que a autora já apresentou antes, sem juízos de valor óbvios: os gestos, as falas de Kossil.
Claro que num romance realmente ousado o fato de Kossil ser filha-da-puta nem precisaria ser verbalizado; creio que o bom autor deixa tudo na mão do bom leitor. Os túmulos de Atuan não são luxo literário como Ada, mas no quesito "literatura de magia" dá de dez mil em um Paulo Coelho. Dele eu li Brida, por exemplo, e a coisa parece um desses romances de banca: toda e qualquer relação entre homem e mulher acabará em amor e/ou sexo - este minuciosamente descrito, é claro. É um vício hollywoodiano de que "para agradar o público feminino tem que ter interesse romântico". Porra nenhuma.