3.8.08

Ai, se mata

Tenho lido bastante. E pensado bastante. Depois vou escrever bastante.

Fiquei pensando numa aula de roteiro que eu tive. Em certa aula você tinha que narrar seu argumento numa roda. Eu estava com meus amigos e a narração de argumentos começou no sentido que se afastava de nós. Ficamos impressionados com uma coisa: como todo mundo solucionava (ou partia de) os conflitos do roteiro com assassinatos ou suicídios. A chacina comeu solta naquela sala. Chegou a vez de uma mulher mais velha, que não se sabe porque resolveu participar daquela aula de pirralhos, que conseguiu espremer nas poucas linhas do seu argumento, pelo que eu me lembro, pedofilia, abuso sexual, drogas, suicídio, estupro e assassinato. Fiquei chocada. Mas interessada? Acho que não.

Já em outra matéria, quando meu grupo da faculdade fez um curta humorístico, o Lady Murphy, o grupo que dividiu a sala de edição com a gente fez a história de uma mulher em crise existencial que se atirava do terceiro andar de camisola branca (de cuja boca escorria uma gotinha de tinta carmim, em close). Não deu pena. Tive que me segurar pra não rir. Felizmente o próprio editor virou pra gente e disse: "ficou trash, não?" Tivemos que concordar.

Nessa época fiquei pensando como são comuns as ficções brasileiras que terminam ou partem de estrangulamentos e esquartejamentos e mutilações em geral. Tem algumas leis além dessas: dois personagens mancomunados nunca são apenas bons amigos; ninguém tem pai ou mãe, e se os tiver, estão em outra cidade/ não se importa com eles. Ninguém trabalha em escritório ou loja: todo mundo é ou traficante/ trombadinha/ mendigo ou escritor/ crítico/ artista plástico. Se é artista plástico, isso está solto na história, quer dizer, ele não vai criar uma obra dentro da história. E, finalmente, ninguém tem problemas de dinheiro. Se tiver, vai matar alguém para resolvê-los.

Essa mania de trágico é falta de traquejo. O sangue frio pode estar na moda, mas ninguém sai matando nem se matando assim à toa. Não dá para ser escritor sem saber elaborar o impacto que outras situações, mais simples, podem ter. Mesmo que se queira falar sobre violência ou morte, pequenos gestos podem transmitir melhor essa impressão.

Estou fazendo força para evitar esses clichês no livro novo. O da profissão é o mais difícil, já que em escritório não acontece nada, ou melhor, acontecem nadas que só fazem sentido dentro do escritório (conforme demonstra a série The Office). Além disso, é interessante explorar o que a pessoa que não tem um trabalho real vai fazer com todo o tempo livre dela - isto é, se você for criativo. Tenho apelado para o uso de estudantes do primeiro ao quarto grau. E mais:

1) Às vezes o personagem pode não ter nenhum relacionamento sexual na vida e também não estar procurando.
2) Às vezes o personagem não tem pai nem mãe, mas tem avós. Os pais podem ter ou ser um insight sobre os filhos (daí a paúra que os autobiografistas têm de inseri-los na história).
3) Os problemas de dinheiro não saem causando mortes. Normalmente eles fazem a pessoa procurar a) uma mamata, b) um emprego de verdade ou c) economizar.
4) Se você tem muitos personagens homens, ou muitas mulheres, simplesmente trocar o sexo deles para equalizar as coisas provavelmente não vai dar certo. E na verdade, equalizar é uma bobagem. Você não tem que preencher nenhum sistema de cotas, relaxe.

Meio óbvio, mas temos que começar por ele, que é artigo em falta.

E seguimos garimpando em busca de novos ovos de Colombo...