13.8.03

A voz do morro

Ah, mas esses funkeiros de hoje cantam mal. Quer dizer, berram, desafinam, rouqueiam a voz e terminam os verbos num infinitivo sem erre... concordância zero.
Mas cê acha que esses cara que consegue fazer música tem instrução nenhuma não? Ou não tem ninguém tipo assim, um revisor, professô de canto ou coisa que o valha que pudesse contratá? E os funks mais antigos, dos anos 90, tinham muito menos erros, se você for reparar.
Sei não. Me cheira a estilo.
Os Bee Gees cantavam em falsete, Renato Russo fazia voz grossa, os rappers americanos fazem voz de cafetão-barítono. E todo cantor de house tem a voz meio enjoada, se é que vocês me entendem. E toda cantora de house canta daquele jeitinho, sabe, que o gogó treme...
E tudo bem, não tô falando que é ruim. Estou dizendo que os funkeiros aqui do Rio encontraram uma forma pro seu conteúdo. A voz deles também grita, mesmo que saibam falar "certo" (ou seja, que nem no asfalto): é assim que o cara médio do morro fala, morou? É assim que a gente se expressa... É assim que a gente seduz, é assim que a gente faz graça... e se não gostou que se foda. Cantar assim é uma agressão ao "nosso" "bom gosto", de propósito. Estamos ambos blefando; mas os tolos metidos a moralistas protestam, pondo mais lenha na fogueira que querem extinguir.
Cantam roucos, estourando os canais, distorcendo. As vozes que embalam as letras já pornográficas demonstram uma espécie de sexualidade mais animal que a do asfalto (tipo, "aqui o negócio não é usar chicote nem comer merda, é "tira bota bota e tira"...), enquanto os bacanas fingem que são Primeiro Mundo e que sexo comum está fora de moda.
E as mulheres, como se sabe, não conquistaram nada nessa. Continuam objetos sexuais. Ou é mais profundo que isso. A garra da pobreza machista ainda é forte o suficiente pra puxá-las de volta, por mais longe que tentem ir. Tive uma amiga que morava lá depois de Bonsucesso, acho que num rincão de Del Castilho, perto, evidentemente, dos bailes. Gostava de rock, cortava o cabelo curto, ia fazer estágio num curso de computação. Mas a atração do abismo acabou pegando ela. Juntou com um cara, morando também com a sogra, pegou um filho aos 19 anos, perdeu. Depois não soube mais dela. Troço naturalista. Triste.