Eu vou falar uma coisa horrível agora para quem não sabe ou não percebeu: esse país e eu nunca nos bicamos. Não digo que a culpa é dele ou é minha, mas nossas práticas são diferentes. Talvez eu seja uma nova espécie de brasileira ou uma velha espécie de inglesa ou japonesa, mas o fato é que não furo o sinal com minha bicicleta, não jogo papel na rua, valorizo extremamente o silêncio e a natureza, e detesto a obviedade de um olhar lúbrico eterno pregado à minha bunda. Me identifico mais com os índios autóctones do que com essa descivilização encruada que parece só saber poluir, gastar e desperdiçar.
Na fila da C&A eu vejo um pobre com vergonha de recusar o cartão da loja dizendo que sempre estoura o limite dos cartões que já tem e tem que completar no próximo mês, mas acaba fazendo o novo cartão por pura timidez; atrás de mim alguém diz que o tênis de 139,90 talvez não passe em seu cartão mas vai tentar assim mesmo; viro-me e vejo que é uma mulher com uniforme de faxineira. Eu nunca comprei sapatos tão caros, pois sei que eles não valem isso. Por que os pobres não têm estrutura para resistir ao consumismo e se sentir ultrajados ao ver que lhes querem empurrar algum supérfluo goela abaixo? A educação é uma parte da resposta, tenho certeza, mas não é só isso. Temos mesmo uma espécie de orgulho mal-ajambrado, uma cruza entre o célebre complexo de vira-lata conforme o batizou Nelson Rodrigues misturado a uma "consciência" de que agora seríamos uma "nação emergente" e próspera: preferimos revirar e comer lixo do que ir bater na porta da Casa Grande e exigir direitos. Quando um não agüenta e exige (“meu filho foi assassinado por policiais”), só então outras vozes se levantam: para barrá-lo, impedi-lo de se estressar, assegurá-lo de que nada vai mudar e pedir-lhe por favor que não seja chato. É a famosa turma do deixa-disso. Tudo isso já foi batizado e catalogado por um ou outro sensato, mas somos uma nação que gosta de chupar o óbvio até derreter para durar mais e que gosta de burocracia, portanto arquivamos o acórdão para deliberações futuras do relator.
Somos uma nação de personalidade complexa e distorcida. Talvez seja a personalidade do futuro, talvez seja uma característica que nos faça sobreviver aos piores perrengues que certamente a mãe-natureza reserva aos humanos nos próximos séculos, numa justíssima vendetta. Nós, que nos contentamos com pouco e na primeira oportunidade batemos um sambinha rasteiro, talvez logo tenhamos pouco para nos contentar. Nos ajustamos em qualquer lugar, mesmo nos mais desfavoráveis, como marias-sem-vergonha. Ou melhor, nós não, porque se os, hum, três-quartos não-brasileiros do meu caráter prevalecerem, eu pereço.