7.1.09

perfidia

Houve época em que eu andava almoçando no único restaurante a quilo de Botafogo que ficava aberto após as três horas da tarde, o Atrium. O Atrium fica na Rua 19 de fevereiro, a rua onde passei a infância, e onde hoje existe uma ou duas creches/pré-escolas. Todo dia, depois de acordar, trabalhar e bater a fome, eu montava na bicicleta e pedalava até o Atrium, passando pelo Aleph (Botafogo tem um Aleph). Eu amarrava a minha bicicleta sempre no mesmo poste, o de uma placa que, se não me engano, proibia estacionar daquele lado da rua antes das 7 da noite, algo que ninguém respeitava. Eu almoçava macarrão velho e feijão ressecado e depois voltava para tirar a bicicleta do poste. Tinha sempre um sujeito dentro do carro estacionado ao lado da placa. Ele me assustava, olhasse para mim ou não. Era um quarentão magro, tostado de sol, com a barba mal-feita ou de um dia e camisa social: cara de alemão-caboclo. Quando ele virou para me olhar demonstrou olhos verdes – não doces e poéticos: os olhos verdes mais frios que eu já vi. Às vezes ele olhava para trás, reparando na minha presença, às vezes não; mas logo ele voltava a olhar para frente. Toda a sua atenção estava numa casa do lado oposto da rua, onde se viam e ouviam crianças brincando. Olhando o relógio, me ocorreu que o recreio delas, como o meu, provavelmente começaria às 15:15 da tarde, e por isso elas, eu e o alemão-caboclo nos víamos ali toda tarde àquela hora, 15:30.
O homem estava espreitando aquelas crianças por algum motivo, e digo que meus instintos disseram que era por maus motivos.
Percebi também que todas as outras creches, pré-escolares e casas de festas de Botafogo haviam tirado suas crianças da vista com muros altos e outros artifícios. Aquela era a última que permitia a visão de suas crianças se divertindo.
Apesar de perceber essas coisas, eu não dou pra detetive, porque sou muito notada – detetives têm que ser invisíveis. Mas depois de um tempo, parei de ver o homem naquele lugar, e gosto de pensar que fui eu que o espantei.