30.1.09

Quando li O apanhador no campo de centeio no Ensino Médio, eu tinha uma amiga, Stella, que ficava me dizendo que aquilo era livro de psicopata – que vários serial killers americanos eram leitores fiéis do Salinger. Obviamente ela estava de sacanagem (nerds sacaneiam também), mas o pior é que procedia. Toda pessoa com dificuldade de conexão emocional, de empatia, como o psicopata e o esquizóide, vai tentar racionalizá-la para ver se sente alguma coisa, se se conecta de alguma forma com o mundo, antes de explodir. É por isso que o Salinger faz sucesso nesse nicho. O Salinger também é putinha do zen, dessas coisas japonesas todas. Mas, nele, o zen entra não tanto na parte estóica, mas na parte de manter altos padrões e sentir raiva, nojo e distanciamento de um mundo decadente.
Agora que eu assisti duas temporadas completas do seriado Dexter, sobre um psicopata que decide "limpar o mundo" dos que escapam à justiça convencional, eu lembrei muito do Salinger. E tem dois contos do Amostragem complexa, meu livro novo, que ficaram com a cara do Salinger (embora ele não fosse uma influência oficial). O primeiro conto é o Mousmé - Conto japonês, que toma emprestado motivos zen e tem uma protagonista desassociada do mundo. Além disso, se passa numa escola.

Mousmé: "Você, fineza, começa a se vacinar com o próprio veneno. Tudo é moldado como uma grande piada. Você contraria totalmente as pessoas sem antagonizá-las. Elas te adoram, e você as controla com mãos indolentes. Como um serial killer de filme americano, você espera ser pego. Mas a polícia sempre está um passo atrás. Você começa a fazer indiretas mais diretas. O povo tristemente começa a ensaiar uma revolta, e você tristemente sabe como contornar a situação. Você considera a sério o errar de propósito – mas não existe a menor graça sem o risco cego. Então surge o desespero de tudo aquilo desperdiçado."


E o segundo conto é o Tão bonito que dói que tem uma espécie de Holden psicopata como protagonista.

“Estou no terceiro cigarro da noite e ainda não vi ninguém que preste. Circulo, dou uma volta pelo primeiro andar, acabo pedindo alguma coisa do bar.
Há uma menina maquiada como uma boneca e metida em uma blusa cheia de babadinhos, toda branquela e acompanhada. A biba amiga dela saltita até o DJ que resmunga ao ouvir o pedido por Kraftwerk: vou ver.
Algum rock depois, o DJ aquiesce a tocar The model modificada, com uma base de guitarra emprestada do Garbage. É o tom. Me aproximo do braço da lolita gótica com o cigarro aceso. Fsst. As células se degeneram sob a brasa. Logo se formará uma bolha. Não, esperem: ela percebeu; esfregou. Assim fica marca.
Ela olha pro braço e olha pra mim. Olha pro braço. Pra mim.
– Porra, toma cuidado!
Só isso. Os olhos assassinos demoram um pouco para desgrudarem de mim; vejo que ela captou o propósito – eu parado na frente dela, não com cara de desculpas, não submisso e bêbado, mas sóbrio, sonso e segurando o cigarro no mesmo lugar do contato incendiário – só que não quer se perder nessa. Prefere sua vidinha de simulacro. Mas está marcada.”


Mousmé era para ser o conto influenciado pelo Mishima. E Tão bonito que dói (também conhecido como "conto do Clóvis", de que falo nesse vídeo) é, como bem me lembrou o Ismar, influenciado pelo conto Dentro da noite, de João do Rio – melhor dizendo, é quase uma releitura.