27.12.04

Preâmbulo

O probrema é com os pobres de espírito. Falo especificamente deste país. Um pobre pobre de espírito está no seu lugar, ou pelo menos tem a desculpa perfeita. Não ganha nada deixando de ser pobre de espírito porque as cousas elevadas custam mais caro do que cerveja e tevê; só sofrerá por não tê-las, nem ter como tê-las (alguns criminosos bem surgem desse atrator, não há como negar). É possível que todos os empregos que têm condições de obter comecem a ficar insuportáveis e é possível que acabem, no final das contas, ainda mais pobres. Às vezes podem virar evangélicos. Evangélicos que seguem a doutrina enriquecem depressa, e não porque roubem ou qualquer coisa do gênero, é porque amam o trabalho e abrem empresas, empresas que são supervigiadas mas em compensação os bons empregados sobem rápido, e geralmente também são evangélicos que amam o trabalho. Mas continuam pobres de espírito, é claro, salvo raríssimas exceções. É verdade: Jesus inclui pobres de espírito numa boa-aventurança, não lembro qual, além de comparar os fiéis a ovelhas, pombas, ou seja, nenhum animal de notória inteligência.
Um rico pobre de espírito é não só o que se chama de boçal mas também os que fingem que não vêem os boçais (e os pobres etc.) e os que partem pra cima dos boçais (e dos pobres etc.). Respeito os que notam os boçais, reconhecem que eles são odiosos e juram silenciosamente jamais voltar àquele recinto, recorrendo ao maître somente em último caso (tem uma revelação da MPB na minha sopa); os que têm camisas Lacoste, os que sabem que o mais caro não é quase nunca o melhor; os que vão ao lugar mais discreto, não ao mais badalado. O que é raríssimo.
A classe média tem que ficar fazendo força entre duas paredes que se fecham como uma ostra tentando engoli-la. Muitos pensam em atravessar, é claro, para o lado dos ricos, mas para isso têm que se comportar de tal e tal maneira, falar com tais e tais pessoas, e dependendo da raríssima oportunidade que se lhes apresenta e do rabo que se lhes prende, viram boçais, deslumbrados, pitboys ou adquirem cegueira-surdez seletiva. A zona entre ricos e médios é a mais fértil tanto para os miseráveis como para os nobres de espírito.
Dito isso vamos à

Parábola

A mãe diz que agenda, bateria e óculos de grau não se compra em camelô, mas lá vai a moça olhar a pilha da barraquinha perto do metrô. A marca é Duramark. No meio delas está perdida uma Panasonic. Pergunta quanto está. O homem sai de trás da barraca e se posta à frente dela antes de responder: um e cinqüenta. Nisso, a moça vira a embalagem e vê que está rasgada, as pilhas meio arranhadas, indubitavelmente meio-esvaziadas, reutilizadas, o homem não sai dali - diz:
- Você vai me desculpar, mas esta pilha está aberta. O senhor não tem outra?
Ele olha espantado, como se ela fosse tonta, e mostra as Duramark:
- Tem, sim.
- Não, dessa Panasonic.
Ele procura vagarosamente. Não tem.
- Acabou...
Ele coça a cabeça.
- Olha, leva essa mesmo. Olha só: (ajeita a embalagem para esconder o rasgo) como nova. Nem parece que foi aberta. Está nova, ninguém usou não.
- Não, prefiro não. Obrigada.
- Leva essa aqui então (a Duramark de novo). Vai levar?
- Não... (vagamente assustada) não quero essa marca. Obrigada.
E caminha. O homem fica estatelado no lugar por um segundo. Um segundo depois ele brada, punho cerrado no ar:
- Pobretona! Não tem dinheiro! Tá sem dinheiro nenhum: é por isso que não quis! (Ele olha triunfante para os outros camelôs. Descobriu tudo!) Não tem dinheiro pra comprar a pilha e fugiu, né? Tá sem dinheiro nenhum, não pode pagar, fingiu que não quer! Tá sem dinheiro!
E ele continua além dos limites razoáveis de tempo regulamentar até para uma sessão de insultos cabível, constrangendo a moça por toda a humanidade.