I'm not a juvenile delinquent
Agora estão vendendo estampas falso-Burberry no Brasil, especialmente em shorts e bermudas femininas. Eu mesma comprei uma, para só depois me dar conta que estava me vestindo como a fucking chav.
O chav é o equivalente inglês do nosso playsson. Jovens de baixa renda cheios de gírias miguxentas, correntes de ouro e agasalhos esportivos. É uma estranha mistura da cultura hip-hop com o quadriculado inglês. A namorada do chav, a chavette, não costuma usar quadriculado; faz um gênero mais cachorra Cenoura & Bronze. O problema, claro, não está na maneira como se vestem -- embora seja esteticamente deplorável --, mas na bebida, fumo, gravidez e delinquência precoces.
É uma pena, porque notei a Burberry, loja inglesa que fabrica os mais conceituados (e caros) tecidos quadriculados, meio desprezada pelos bons cidadãos britânicos por causa disso. Parece que até parou de fabricar o seu boné quadriculado quando descobriu que a escória os estava comprando.
Aqui, felizmente, não tem essa conotação. Mas o chavism fica na minha cabeça, e toda vez que vejo alguém usando quadriculado fico achando que a pessoa vai vomitar em cima de mim, sei lá. Depois me dou conta que o pior é terem trazido para cá a moda dos delinquentes juvenis ingleses -- e nem a das meninas, mas a dos meninos. Tudo bem. É só ninguém espalhar a notícia.
Do cordão de ouro, quero distância.
30.1.09
Quando li O apanhador no campo de centeio no Ensino Médio, eu tinha uma amiga, Stella, que ficava me dizendo que aquilo era livro de psicopata – que vários serial killers americanos eram leitores fiéis do Salinger. Obviamente ela estava de sacanagem (nerds sacaneiam também), mas o pior é que procedia. Toda pessoa com dificuldade de conexão emocional, de empatia, como o psicopata e o esquizóide, vai tentar racionalizá-la para ver se sente alguma coisa, se se conecta de alguma forma com o mundo, antes de explodir. É por isso que o Salinger faz sucesso nesse nicho. O Salinger também é putinha do zen, dessas coisas japonesas todas. Mas, nele, o zen entra não tanto na parte estóica, mas na parte de manter altos padrões e sentir raiva, nojo e distanciamento de um mundo decadente.
Agora que eu assisti duas temporadas completas do seriado Dexter, sobre um psicopata que decide "limpar o mundo" dos que escapam à justiça convencional, eu lembrei muito do Salinger. E tem dois contos do Amostragem complexa, meu livro novo, que ficaram com a cara do Salinger (embora ele não fosse uma influência oficial). O primeiro conto é o Mousmé - Conto japonês, que toma emprestado motivos zen e tem uma protagonista desassociada do mundo. Além disso, se passa numa escola.
Mousmé: "Você, fineza, começa a se vacinar com o próprio veneno. Tudo é moldado como uma grande piada. Você contraria totalmente as pessoas sem antagonizá-las. Elas te adoram, e você as controla com mãos indolentes. Como um serial killer de filme americano, você espera ser pego. Mas a polícia sempre está um passo atrás. Você começa a fazer indiretas mais diretas. O povo tristemente começa a ensaiar uma revolta, e você tristemente sabe como contornar a situação. Você considera a sério o errar de propósito – mas não existe a menor graça sem o risco cego. Então surge o desespero de tudo aquilo desperdiçado."
E o segundo conto é o Tão bonito que dói que tem uma espécie de Holden psicopata como protagonista.
“Estou no terceiro cigarro da noite e ainda não vi ninguém que preste. Circulo, dou uma volta pelo primeiro andar, acabo pedindo alguma coisa do bar.
Há uma menina maquiada como uma boneca e metida em uma blusa cheia de babadinhos, toda branquela e acompanhada. A biba amiga dela saltita até o DJ que resmunga ao ouvir o pedido por Kraftwerk: vou ver.
Algum rock depois, o DJ aquiesce a tocar The model modificada, com uma base de guitarra emprestada do Garbage. É o tom. Me aproximo do braço da lolita gótica com o cigarro aceso. Fsst. As células se degeneram sob a brasa. Logo se formará uma bolha. Não, esperem: ela percebeu; esfregou. Assim fica marca.
Ela olha pro braço e olha pra mim. Olha pro braço. Pra mim.
– Porra, toma cuidado!
Só isso. Os olhos assassinos demoram um pouco para desgrudarem de mim; vejo que ela captou o propósito – eu parado na frente dela, não com cara de desculpas, não submisso e bêbado, mas sóbrio, sonso e segurando o cigarro no mesmo lugar do contato incendiário – só que não quer se perder nessa. Prefere sua vidinha de simulacro. Mas está marcada.”
Mousmé era para ser o conto influenciado pelo Mishima. E Tão bonito que dói (também conhecido como "conto do Clóvis", de que falo nesse vídeo) é, como bem me lembrou o Ismar, influenciado pelo conto Dentro da noite, de João do Rio – melhor dizendo, é quase uma releitura.
Agora que eu assisti duas temporadas completas do seriado Dexter, sobre um psicopata que decide "limpar o mundo" dos que escapam à justiça convencional, eu lembrei muito do Salinger. E tem dois contos do Amostragem complexa, meu livro novo, que ficaram com a cara do Salinger (embora ele não fosse uma influência oficial). O primeiro conto é o Mousmé - Conto japonês, que toma emprestado motivos zen e tem uma protagonista desassociada do mundo. Além disso, se passa numa escola.
Mousmé: "Você, fineza, começa a se vacinar com o próprio veneno. Tudo é moldado como uma grande piada. Você contraria totalmente as pessoas sem antagonizá-las. Elas te adoram, e você as controla com mãos indolentes. Como um serial killer de filme americano, você espera ser pego. Mas a polícia sempre está um passo atrás. Você começa a fazer indiretas mais diretas. O povo tristemente começa a ensaiar uma revolta, e você tristemente sabe como contornar a situação. Você considera a sério o errar de propósito – mas não existe a menor graça sem o risco cego. Então surge o desespero de tudo aquilo desperdiçado."
E o segundo conto é o Tão bonito que dói que tem uma espécie de Holden psicopata como protagonista.
“Estou no terceiro cigarro da noite e ainda não vi ninguém que preste. Circulo, dou uma volta pelo primeiro andar, acabo pedindo alguma coisa do bar.
Há uma menina maquiada como uma boneca e metida em uma blusa cheia de babadinhos, toda branquela e acompanhada. A biba amiga dela saltita até o DJ que resmunga ao ouvir o pedido por Kraftwerk: vou ver.
Algum rock depois, o DJ aquiesce a tocar The model modificada, com uma base de guitarra emprestada do Garbage. É o tom. Me aproximo do braço da lolita gótica com o cigarro aceso. Fsst. As células se degeneram sob a brasa. Logo se formará uma bolha. Não, esperem: ela percebeu; esfregou. Assim fica marca.
Ela olha pro braço e olha pra mim. Olha pro braço. Pra mim.
– Porra, toma cuidado!
Só isso. Os olhos assassinos demoram um pouco para desgrudarem de mim; vejo que ela captou o propósito – eu parado na frente dela, não com cara de desculpas, não submisso e bêbado, mas sóbrio, sonso e segurando o cigarro no mesmo lugar do contato incendiário – só que não quer se perder nessa. Prefere sua vidinha de simulacro. Mas está marcada.”
Mousmé era para ser o conto influenciado pelo Mishima. E Tão bonito que dói (também conhecido como "conto do Clóvis", de que falo nesse vídeo) é, como bem me lembrou o Ismar, influenciado pelo conto Dentro da noite, de João do Rio – melhor dizendo, é quase uma releitura.
interpretação de letras de música
- O Mestre e Margarita, de Mikhail Bulgakov, se tornou um clássico instantâneo pra mim quando o li. Acabo de descobrir que Love and destroy, uma das minhas músicas preferidas do Franz Ferdinand, é uma homenagem à Margarita (mais exatamente, ao meu capítulo preferido, em que ela vira bruxa e sai destruindo os imbecis de Moscou que atacavam seu amante, o Mestre). E acho que passa bem o clima do capítulo.
I'm so free as I'm naked
Shining silver under the moon
I’m high above the Moscowites' sky
I'm gonna rip, rip, I'll never sleep
(...)
I'm so free as I meet you
Welcoming black, your the Queen of the ball
It's dark beneath the Moscowite' sky
But you give, you give me it all
I'm here with you at midnight
(...)
Tenho essa tendência a gostar muito de músicas que, mais tarde, percebo que fazem referência a livros. Foi assim com Style, do Orbital, cujo clipe faz referências a Metamorfose, do Kafka.
- E outro dia descobri que uma das minhas músicas preferidas do U.N.K.L.E., Nursery rhyme/Breather, é narrada em primeira pessoa por um feto que sente quando a mãe faz sexo. Não, não tô de sacanagem. Sabendo disso, não tem como não achar a música meio nojenta:
Does it mean I never let you know
Each time I turn inside
When I fully grown I’ll outsize you
But I won’t let you fall in love
You know it flows over me
And you won’t let me drown inside
Sing a nursery rhyme to keep me quiet
Sing a nursery rhyme to keep me quiet
Woman please stay close to me, close to me
Carried through your ecstasy
(...)
I have to breathe the air you breathe
I’m inside you
In a room inside a room, I’m inside you
The colour changes follow your emotion
I can see when you’re feeling desire
I feel him close to you
While I just walk around inside you
Don’t let him close to me
Not when you know it’s not the one
The one (x6) that you love
(...)
Como descobri isso? Sei lá, de repente dei pra prestar atenção em letras de música e ter insights.
- O Mestre e Margarita, de Mikhail Bulgakov, se tornou um clássico instantâneo pra mim quando o li. Acabo de descobrir que Love and destroy, uma das minhas músicas preferidas do Franz Ferdinand, é uma homenagem à Margarita (mais exatamente, ao meu capítulo preferido, em que ela vira bruxa e sai destruindo os imbecis de Moscou que atacavam seu amante, o Mestre). E acho que passa bem o clima do capítulo.
I'm so free as I'm naked
Shining silver under the moon
I’m high above the Moscowites' sky
I'm gonna rip, rip, I'll never sleep
(...)
I'm so free as I meet you
Welcoming black, your the Queen of the ball
It's dark beneath the Moscowite' sky
But you give, you give me it all
I'm here with you at midnight
(...)
Tenho essa tendência a gostar muito de músicas que, mais tarde, percebo que fazem referência a livros. Foi assim com Style, do Orbital, cujo clipe faz referências a Metamorfose, do Kafka.
- E outro dia descobri que uma das minhas músicas preferidas do U.N.K.L.E., Nursery rhyme/Breather, é narrada em primeira pessoa por um feto que sente quando a mãe faz sexo. Não, não tô de sacanagem. Sabendo disso, não tem como não achar a música meio nojenta:
Does it mean I never let you know
Each time I turn inside
When I fully grown I’ll outsize you
But I won’t let you fall in love
You know it flows over me
And you won’t let me drown inside
Sing a nursery rhyme to keep me quiet
Sing a nursery rhyme to keep me quiet
Woman please stay close to me, close to me
Carried through your ecstasy
(...)
I have to breathe the air you breathe
I’m inside you
In a room inside a room, I’m inside you
The colour changes follow your emotion
I can see when you’re feeling desire
I feel him close to you
While I just walk around inside you
Don’t let him close to me
Not when you know it’s not the one
The one (x6) that you love
(...)
Como descobri isso? Sei lá, de repente dei pra prestar atenção em letras de música e ter insights.
28.1.09
muuu
Qual é a ideia por trás de chamar alguém de "vaca sagrada da literatura"? Muitas vezes acho que o autor do artigo quer apenas glorificar a pessoa, dizer que ela é um dos expoentes de determinado movimento literário.
Mas eu sempre leio "vaca" de forma ambígua. Quer dizer, na Índia a vaca é sagrada, mas os ocidentais costumam se referir a isso não só como excentricidade mas também como um grande estorvo -- "quando a vaca resolve empacar no meio da rua, ninguém pode tirá-la de lá". Eu acho que determinadas vacas sagradas da literatura (e de muitas outras artes) já pararam de dar leite há muito tempo e estão empacadas no meio da rua, fazendo pilhas de cocô fumegante, e ninguém pode sequer tocar nelas.
Tem outra também: fulano é um monstro (sagrado) da literatura. Sagrado ou não, cadê o Teseu, gente?
Qual é a ideia por trás de chamar alguém de "vaca sagrada da literatura"? Muitas vezes acho que o autor do artigo quer apenas glorificar a pessoa, dizer que ela é um dos expoentes de determinado movimento literário.
Mas eu sempre leio "vaca" de forma ambígua. Quer dizer, na Índia a vaca é sagrada, mas os ocidentais costumam se referir a isso não só como excentricidade mas também como um grande estorvo -- "quando a vaca resolve empacar no meio da rua, ninguém pode tirá-la de lá". Eu acho que determinadas vacas sagradas da literatura (e de muitas outras artes) já pararam de dar leite há muito tempo e estão empacadas no meio da rua, fazendo pilhas de cocô fumegante, e ninguém pode sequer tocar nelas.
Tem outra também: fulano é um monstro (sagrado) da literatura. Sagrado ou não, cadê o Teseu, gente?
25.1.09
trick or treat?
O primeiro livro que tirei da caixa veio em formato mangá. Que graça.
Como foi feito via Lei Rouanet, o Amostragem complexa tem que ter uma "contrapartida cultural". No caso, 10% da tiragem do livro é para ser distribuída de graça. Tenho que enviar dois para cada biblioteca central de cada um dos 27 estados brasileiros, um para a Casa de Ruy Barbosa e o resto para a Biblioteca Nacional.
Assim que os livros chegaram aqui, portanto, me muni de envelopes, etiquetas, fita adesiva e pilot para começar a labuta. Me senti embrulhando saquinhos de Cosme & Damião. Também me senti mãe encapando os cadernos dos filhos.
Embora as instruções não pedissem isso, colei um avisozinho dentro de cada um: é pra distribuição cultural, viu (não com essa redação, claro). O livro ficou tão bonito, que é capaz de quererem levar para casa - me chama de paranoica depois do escândalo das doações a Santa Catarina.
(P.S.: Deve demorar um pouco para você poder retirar o Amostragem complexa na biblioteca do seu estado devido a burocracias mil. A paciência é uma virtude.)
O primeiro livro que tirei da caixa veio em formato mangá. Que graça.
Como foi feito via Lei Rouanet, o Amostragem complexa tem que ter uma "contrapartida cultural". No caso, 10% da tiragem do livro é para ser distribuída de graça. Tenho que enviar dois para cada biblioteca central de cada um dos 27 estados brasileiros, um para a Casa de Ruy Barbosa e o resto para a Biblioteca Nacional.
Assim que os livros chegaram aqui, portanto, me muni de envelopes, etiquetas, fita adesiva e pilot para começar a labuta. Me senti embrulhando saquinhos de Cosme & Damião. Também me senti mãe encapando os cadernos dos filhos.
Embora as instruções não pedissem isso, colei um avisozinho dentro de cada um: é pra distribuição cultural, viu (não com essa redação, claro). O livro ficou tão bonito, que é capaz de quererem levar para casa - me chama de paranoica depois do escândalo das doações a Santa Catarina.
(P.S.: Deve demorar um pouco para você poder retirar o Amostragem complexa na biblioteca do seu estado devido a burocracias mil. A paciência é uma virtude.)
17.1.09
16.1.09
Tentando achar meu próprio perfil num desses sites de relacionamento para dar a uma amiga, dei de cara com essa entrevista dada nos idos de 2007 e publicada ontem (com uma foto de 2008) no Portal Literal.
Eu estava meio sem noção nessa época. Extremamente sincera.
Trechinhos:
"O Jornalismo contribuiu porque foi um curso tão, mas tão picareta, que jamais atrapalhou os meus estudos. Em Produção Editorial eu senti que realmente aprendi alguma coisa; agora penso no livro também como objeto vendável e estético, me interesso por diagramação, capas bem-cuidadas, políticas de fomento à leitura, questões de distribuição etc. Não sou mais alienada, que droga."
"Aos sete anos, li os romances de banca que minha mãe lia. Achei-os muito ruins e decidi escrever um melhor. Não queria que a minha mãe lesse aquela porcaria, queria que ela lesse coisas boas (e era convencida o suficiente para acreditar que conseguiria fazer melhor)."
"Mas há pessoas por aí que valem a pena, com as quais pretendo me comunicar. Não são as pessoas mais afáveis, nem são as que entram em contato, nem as que me elogiam e recomendam. O livro é como se fosse um bilhete secreto para elas – um que não precisa ser respondido, mas é muito bem-vindo. É uma confirmação de que não estamos sozinhos. É também um leve peteleco evolutivo, um instrumento para pensar e acelerar coisas que acontecem e estão prestes a acontecer."
"Há sim certo fio condutor perpassando tudo até agora: a maldade."
"E não saia mandando originais não-solicitados às pessoas: escritores, editores, o que seja. Não seja um operador de telemarketing."
Eu estava meio sem noção nessa época. Extremamente sincera.
Trechinhos:
"O Jornalismo contribuiu porque foi um curso tão, mas tão picareta, que jamais atrapalhou os meus estudos. Em Produção Editorial eu senti que realmente aprendi alguma coisa; agora penso no livro também como objeto vendável e estético, me interesso por diagramação, capas bem-cuidadas, políticas de fomento à leitura, questões de distribuição etc. Não sou mais alienada, que droga."
"Aos sete anos, li os romances de banca que minha mãe lia. Achei-os muito ruins e decidi escrever um melhor. Não queria que a minha mãe lesse aquela porcaria, queria que ela lesse coisas boas (e era convencida o suficiente para acreditar que conseguiria fazer melhor)."
"Mas há pessoas por aí que valem a pena, com as quais pretendo me comunicar. Não são as pessoas mais afáveis, nem são as que entram em contato, nem as que me elogiam e recomendam. O livro é como se fosse um bilhete secreto para elas – um que não precisa ser respondido, mas é muito bem-vindo. É uma confirmação de que não estamos sozinhos. É também um leve peteleco evolutivo, um instrumento para pensar e acelerar coisas que acontecem e estão prestes a acontecer."
"Há sim certo fio condutor perpassando tudo até agora: a maldade."
"E não saia mandando originais não-solicitados às pessoas: escritores, editores, o que seja. Não seja um operador de telemarketing."
7.1.09
perfidia
Houve época em que eu andava almoçando no único restaurante a quilo de Botafogo que ficava aberto após as três horas da tarde, o Atrium. O Atrium fica na Rua 19 de fevereiro, a rua onde passei a infância, e onde hoje existe uma ou duas creches/pré-escolas. Todo dia, depois de acordar, trabalhar e bater a fome, eu montava na bicicleta e pedalava até o Atrium, passando pelo Aleph (Botafogo tem um Aleph). Eu amarrava a minha bicicleta sempre no mesmo poste, o de uma placa que, se não me engano, proibia estacionar daquele lado da rua antes das 7 da noite, algo que ninguém respeitava. Eu almoçava macarrão velho e feijão ressecado e depois voltava para tirar a bicicleta do poste. Tinha sempre um sujeito dentro do carro estacionado ao lado da placa. Ele me assustava, olhasse para mim ou não. Era um quarentão magro, tostado de sol, com a barba mal-feita ou de um dia e camisa social: cara de alemão-caboclo. Quando ele virou para me olhar demonstrou olhos verdes – não doces e poéticos: os olhos verdes mais frios que eu já vi. Às vezes ele olhava para trás, reparando na minha presença, às vezes não; mas logo ele voltava a olhar para frente. Toda a sua atenção estava numa casa do lado oposto da rua, onde se viam e ouviam crianças brincando. Olhando o relógio, me ocorreu que o recreio delas, como o meu, provavelmente começaria às 15:15 da tarde, e por isso elas, eu e o alemão-caboclo nos víamos ali toda tarde àquela hora, 15:30.
O homem estava espreitando aquelas crianças por algum motivo, e digo que meus instintos disseram que era por maus motivos.
Percebi também que todas as outras creches, pré-escolares e casas de festas de Botafogo haviam tirado suas crianças da vista com muros altos e outros artifícios. Aquela era a última que permitia a visão de suas crianças se divertindo.
Apesar de perceber essas coisas, eu não dou pra detetive, porque sou muito notada – detetives têm que ser invisíveis. Mas depois de um tempo, parei de ver o homem naquele lugar, e gosto de pensar que fui eu que o espantei.
Houve época em que eu andava almoçando no único restaurante a quilo de Botafogo que ficava aberto após as três horas da tarde, o Atrium. O Atrium fica na Rua 19 de fevereiro, a rua onde passei a infância, e onde hoje existe uma ou duas creches/pré-escolas. Todo dia, depois de acordar, trabalhar e bater a fome, eu montava na bicicleta e pedalava até o Atrium, passando pelo Aleph (Botafogo tem um Aleph). Eu amarrava a minha bicicleta sempre no mesmo poste, o de uma placa que, se não me engano, proibia estacionar daquele lado da rua antes das 7 da noite, algo que ninguém respeitava. Eu almoçava macarrão velho e feijão ressecado e depois voltava para tirar a bicicleta do poste. Tinha sempre um sujeito dentro do carro estacionado ao lado da placa. Ele me assustava, olhasse para mim ou não. Era um quarentão magro, tostado de sol, com a barba mal-feita ou de um dia e camisa social: cara de alemão-caboclo. Quando ele virou para me olhar demonstrou olhos verdes – não doces e poéticos: os olhos verdes mais frios que eu já vi. Às vezes ele olhava para trás, reparando na minha presença, às vezes não; mas logo ele voltava a olhar para frente. Toda a sua atenção estava numa casa do lado oposto da rua, onde se viam e ouviam crianças brincando. Olhando o relógio, me ocorreu que o recreio delas, como o meu, provavelmente começaria às 15:15 da tarde, e por isso elas, eu e o alemão-caboclo nos víamos ali toda tarde àquela hora, 15:30.
O homem estava espreitando aquelas crianças por algum motivo, e digo que meus instintos disseram que era por maus motivos.
Percebi também que todas as outras creches, pré-escolares e casas de festas de Botafogo haviam tirado suas crianças da vista com muros altos e outros artifícios. Aquela era a última que permitia a visão de suas crianças se divertindo.
Apesar de perceber essas coisas, eu não dou pra detetive, porque sou muito notada – detetives têm que ser invisíveis. Mas depois de um tempo, parei de ver o homem naquele lugar, e gosto de pensar que fui eu que o espantei.
6.1.09
Dois drops
- O Coisas frágeis, do Neil Gaiman, foi lido em 24 horas aqui em casa. Por duas pessoas.
O Gaiman é um imitador -- você vai identificar nos textos elementos de outros autores (Lovecraft, Roald Dahl) misturados às obsessões dele próprio, que vão de cistos na cara a coisas abstratas antropomorfizadas, e que você descobre lendo as outras coisas dele. Mas a forma dahliana como ele perverte a literatura infantil inglesa em O problema de Susan me pareceu simplesmente genial. Outros contos que valem muito a pena são Lembranças e tesouros e Os fatos no caso da partida da senhorita Finch. Talvez não coincidentemente, contos em que o autor abandona um pouco a fofice e a espoletice adolescente que permeiam bastante da sua obra. Mais ou menos como se a Mallu Magalhães resolvesse fazer um cover do Slayer.
Ah, o casal que aparece no conto da srta. Finch existe de verdade. É aquele que se casa no Japanorama.
- Words of tranquility, do Koop, me lembra Beowulf. Pior que só vi o filme, mas fui ver com alguém que tinha lido o livro. Minha desculpa atual é que prefiro ler Beowulf no original e, para isso, preciso aprender inglês arcaico.
- O Coisas frágeis, do Neil Gaiman, foi lido em 24 horas aqui em casa. Por duas pessoas.
O Gaiman é um imitador -- você vai identificar nos textos elementos de outros autores (Lovecraft, Roald Dahl) misturados às obsessões dele próprio, que vão de cistos na cara a coisas abstratas antropomorfizadas, e que você descobre lendo as outras coisas dele. Mas a forma dahliana como ele perverte a literatura infantil inglesa em O problema de Susan me pareceu simplesmente genial. Outros contos que valem muito a pena são Lembranças e tesouros e Os fatos no caso da partida da senhorita Finch. Talvez não coincidentemente, contos em que o autor abandona um pouco a fofice e a espoletice adolescente que permeiam bastante da sua obra. Mais ou menos como se a Mallu Magalhães resolvesse fazer um cover do Slayer.
Ah, o casal que aparece no conto da srta. Finch existe de verdade. É aquele que se casa no Japanorama.
- Words of tranquility, do Koop, me lembra Beowulf. Pior que só vi o filme, mas fui ver com alguém que tinha lido o livro. Minha desculpa atual é que prefiro ler Beowulf no original e, para isso, preciso aprender inglês arcaico.
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