O medo da substituição
Há um obscuro conto dos Irmãos Grimm chamado Um-Olhinho, Dois-Olhinhos e Três-Olhinhos. A história: as irmãs de um e três olhos odeiam e destratam a irmã normal por ela não passar de mais uma no rebanho. Porém, certa divindade ajuda a menina de dois olhos a escapar daquela situação e a encontrar seu príncipe.
A mensagem é dupla. O normal é ser normal - isso é o que o final da história parece nos assegurar. Porém, o fato da menina de dois olhos precisar de ajuda mágica para sobrepujar suas inimigas nos põe a pensar se, afinal de contas, ela não se destacou porque se tornou mais extraordinária que suas irmãs.
Hoje, o corpo humano se tornou amplamente cultivável. A técnica nos promete infinita capacidade de auto-determinação, e inclusive, para o futuro, a imortalidade. Tatuagens, plásticas, próteses, seios de silicone, fisiculturismo etc. - as possibilidades se multiplicam.
Na atualidade, há euforia e medo quanto a essas possibilidades. Enquanto alguns exibem na mídia seus corpos altamente modificados e disciplinados, outros estão atordoados com a perda de referências; afinal, nossa tradicional noção de humano - algo mortal, singular e sexualmente desejante - é continuamente abalada.
Esta análise se utilizará de dois conhecidos filmes de ficção-científica (narrativa da atualidade por excelência), Matrix e Blade Runner, para iluminar algumas questões suscitadas pela grande intervenção da técnica no corpo e na idéia de corpo.
Matrix - Quem é que manda?
A campanha publicitária do filme Matrix se concentrou no mistério: o que é a Matrix? A Matrix, primariamente, é uma estrutura que embota a consciência dos humanos para que as máquinas possam se servir da energia dos corpos. Mas a campanha só funcionou porque a resposta não só não decepcionava, como produzia terror: a Matrix é simplesmente a tradução de um dos maiores medos patológicos atuais. Hoje, usamos as máquinas como acessórios à nossa vida e corpo; amanhã, as máquinas poderão estar nos usando da mesma forma - por que não?
Há outros agravantes: no filme, as máquinas produzem humanos (assim como produzimos máquinas hoje); mais especificamente, as máquinas cultivam humanos, seus alimentos, em simulacros de plantações (assim como cultivamos nossos alimentos em plantações).
No filme, as pilhas humanas são conectadas à Matrix através dos chakras do corpo. Quando o personagem Neo (Keanu Reeves) é libertado da estrutura, um (re)nascimento é astuciosamente emulado: nu, Neo é expulso do casulo-útero e escorrega por um túnel junto com uma espécie de líquido amniótico. Tudo isso ajuda a produzir um fascinante terror no espectador.
Porém, o verdadeiro medo não é de nos tornarmos baterias para computadores avançados. A ameaça é perder os limites: quanto de mim posso substituir por técnica sem que deixe de ser eu mesmo - ou ser humano?
Em Matrix, há graus diferentes de envolvimento dentro da estrutura. Aquele que está totalmente embotado pelo sistema, que está tão integrado que não percebe que faz parte dele, pode ser, a qualquer momento, incorporado por um dos Agentes - entidades que cuidam da manutenção da ordem na Matrix. Por isso, os humanos de fora do sistema buscam libertar principalmente os que sentem que estão presos.
Igualmente, é mencionado que os Agentes não têm a capacidade que os humanos possuem de quebrar as regras do sistema - porque são baseados num mundo feito de regras. E essas regras são as da Lógica, desde a álgebra booleana até algoritmos (1), que os humanos são igualmente capazes de usar - porém, com o grande diferencial da imaginação e da criatividade.
Os humanos que vivem fora da Matrix, no entanto, não deixam de se servir das máquinas. Eles se utilizam de outras máquinas para observar a Matrix; conectam-se, literalmente, a realidades similares à Matrix para treinar contra a própria; fazem download de novas habilidades (como o kung-fu) nos próprios cérebros.
É quase uma divisão entre máquinas-vilão e máquinas-mocinho. As máquinas boas ajudam os humanos e estão sob o seu controle, até porque não têm consciência; as más, até porque têm consciência, há tempos rebelaram-se e escravizaram os humanos.
O que nos leva a outra questão premente, o reverso da moeda: quanto de humano posso pôr na máquina sem que ela também se torne humana - obtendo consciência, por exemplo?
(1) Larry Gonick propõe um “algoritmo sinistro” que seria capaz de transformar uma máquina num predador cibernético. Seria algo como: Reproduza-se. (1) SE nada se interpõe no seu caminho, ENTÃO volte para Reproduza-se. (2) SE algo se interpõe no seu caminho, ENTÃO destrua-o.
Blade Runner - Máquinas com alma
Quem se lembra da história do caçador de andróides há de concordar que se trata de um filme tremendamente humano. O termo utilizado para a matança de um andróide era remoção. Porém, quando algum andróide morria, o filme parava para se lamentar. Morriam em câmera lenta. Às vezes, seguia-se um longo e compungente close no corpo inerte.
Os andróides poderão ser como nós; terão sentimentos e desejos. Uma das personagens chega a citar o famoso Penso, logo existo. Esta é uma das lições da história. Mas o filme vai além, instilando a suspeita de que, talvez, estes andróides poderão ser melhores que nós.
Os andróides da geração Nexus-6, o ápice da similaridade aos humanos, duravam apenas quatro anos. O recado é claro: o gênio Tyrell (Joe Turkel) percebera que era preciso limitar as máquinas. Primeiro, para que elas não se misturassem a nós. Segundo, e mais importante, para que elas não nos sobrepujassem.
Blade Runner, no entanto, acena com ainda outra mensagem: a de que a qualidade da vida não é medida pela sua duração. Ao longo do filme, todos os andróides provam ter ideais mais puros que os dos humanos. A luz que brilha o dobro dura a metade, diz o criador (Tyrell) quando confrontado à criatura (Roy Batty, andróide representado por Rutger Hauer) que pede mais tempo de vida, sem obtê-lo. Pouco depois, os nobres ideais de Roy fazem com que ele salve a vida daquele que o caça, provavelmente por identificação com sua vontade de viver. Então, percebendo que sua hora está chegando, descreve as melhores imagens da sua vida e conclui: todos estes momentos morrerão com ele. Roy morre soltando uma pomba branca contra o céu poluído.
Matrix - Membros Descartáveis
Anos depois, os irmãos Wachowski realizaram a vertiginosa fantasia conhecida como Matrix. A morte já acontecia de uma forma diferente: em alta velocidade. As pessoas caíam para todos os lados. Dessa vez os computadores (agentes) não eram humanizados, e sim indestrutíveis. Aliás, um corpo humano poderia ser tomado por eles a qualquer momento. Servíamos como meras pilhas para o imenso mainframe chamado Matrix.
Mesmo na equipe dos mocinhos, quando se sofria uma baixa, a ação logo era retomada. Alguém constatava: Ele morreu, só para registro, e antes que se pudesse repetir o nome do finado, seguia a trama. Os únicos que garantidamente continuarão até o fim do filme - e numa provável seqüência - são os heróis principais. Fenômeno igualmente observável em outros filmes recentes, como a série Missão Impossível.
Conclusão
A vontade de não ser mais um no rebanho é o que mais tem empurrado alguns de nós para a modificação do corpo por meio da técnica: ser mais bonito do que era, mais musculoso que os outros, mais veloz que o último recorde.
Parece ser uma infindável alimentação de ego que, muitas vezes, traz conseqüências penosas - vide o número de desastres nas mesas de operação plástica e mortes de atletas por excesso de anabolizantes. Cirurgiões plásticos que mantêm sua ética chegam a recusar plásticas desnecessárias e/ou arriscadas, motivadas na verdade por problemas de auto-estima do cliente.
Como se vê, o individualismo chega às últimas conseqüências impulsionando e impulsionado pelos progressos da técnica, quase num moto-contínuo. A pergunta é: onde isso nos levará? Qual aspecto da antiga concepção de humanidade o pós-humano irá resgatar: o melhor, como em Blade Runner, ou o pior, como em Matrix?