20.5.04

Os joelhos

Ela desceu dobrando os joelhos e encostou-os no chão, deixando pros cotovelos a tarefa de segurar a parte da frente.
Naquela posição quase fetal, sentia os peitos tocarem os braços, e a ducha quente batendo no chão e espirrando entre as suas coxas.
O chão era rico em detalhes, apesar de parecer azulejo imaculado lá de cima. Viu pedacinhos de cabelo coalhados pelo chão, então a água não os levava afinal, eram leves demais os resíduos da barba dele e dos pêlos que ela aparava. Um monte de material genético, era só chegar perto pra ver melhor. Talvez se se aproximasse o bastante, talvez com um microscópio poderoso, os pêlos de cada um pudessem ser separados e catalogados do mais antigo ao mais novo.
Hum.
Por quê?
"Tenho que subir".
Olhou pro ralo, onde um feixe de cabelos ondulava aleatoriamente ao sabor da água.
"Droga, esqueci de limpar isso de manhã".
Seus cabelos caíam num ritmo normal, o problema de queda estava superado desde que passara a lavar não todo dia, mas dia sim, dia não; e massageava com a ponta dos dedos, não com as unhas.
"Tenho que me levantar".
E tinha uma área do box onde a água não corria e ficava uma sujeira granulada. Ela passou o dedo e apareceu a brancura, que nem quando acumula pó em vidro de carro. Pó = poeira, uma palavra tão exótica. Aliás, em qualquer língua. Poussière. Dust. Polvo. Staub.
Esfregou a palma da mão na sujeira e empurrou-a pro ralo.
"Porque, se eu não levantar agora, alguém pode estranhar o fato de eu ter me prostrado assim. E eu odeio questionamentos. Vão perguntar "por que...?", separado e sem acento, e eu teria que responder "porque..." junto e sem acento. Odeio gramática, odeio!"
E bateu na água, que espirrou, e continuou a bater nela com as duas mãos ouvindo o barulhinho, sentindo a água quente escorrendo pelas costas, encostando a testa no chão e inspirando fundo e ficando de quatro pra se levantar.
Mas sentira que alguém entrara, e respondera sem abrir os olhos sem sair de onde estava:
- Descanso.
A voz subiu aguada mas compreensível para a pessoa que fechou a porta pois respeitava a privacidade alheia, especialmente a dela.
"E ela nunca quer me dar a bunda".