3.11.04

Noite (Érico Verissimo) é dessas histórias com moral, como aquelas que às vezes gosto de escrever, e lendo o livro, por algum motivo, percebi o quão genial e livre foi a adaptação do filme (sim, há um filme, e se chama Noite mesmo). Evidentemente não existe DVD, mas passa(va) no Canal Brasil. Prefiro pensar que Noite não fala de Uma Noite, tampouco dA Noite: é Noite-clima, Noite-isso. A orelha da edição que tive em mãos (é do Pablo) é muito bem escrita e diz que se trata da noite interior do homem. Não sei como chegaram a essa conclusão, mas concordo plenamente. Poxa, é curto, e logo vão lançar uma nova edição por causa do centenário de nascimento do Érico; vale a pena ler, especialmente pelas páginas finais, espetaculares em sua simplicidade. Não se inventa nada, diz-se apenas o que estava ali.
Frase lapidar: Centauro é um monstro mitológico, metade homem, metade cavalo.
Trecho-degustação: Pensou mais uma vez em procurar um analista e contar-lhe tudo, porém um pudor invencível o deteve. Não podia imaginar-se a confessar tamanhas intimidades a um estranho. Não teria coragem de confiá-las nem ao melhor amigo. Era até com certa relutância que contava essas coisas a si mesmo.
(O contava em itálico. Corajoso, não?)
O outro que li foi Voragem, Junichiro Tanizaki, comprado em excelente oferta da Sodiler. Como se vê, ando com um pendor por livros antigos: este é de 1931, Noite é de 1952. Você pode até começar a ler devagar; depois, você quer saber onde toda aquela desconfiança mútua vai dar, e lê Voragem com voragem até acabarem as páginas. Sabe? Tragédia mais que anunciada, você sabe que vai acontecer, mas catarticamente quer ver acontecer? Ahh. Parece o meu último conto publicado, o em 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura, pela desconfiança mútua (que causa assunções nem sempre corretas, modificadas por revelações e pactos com o ex-quase-futuro-inimigo, só para descobrir que fez uma imensa besteira, e recomeçar o mesmo ideograma pelo outro lado).
Trecho-degustação: Ele retrucou que Mitsuko, por mais apaixonada que estivesse, jamais dava a conhecer sua fraqueza; preferia fazer de tudo para que o objeto de sua paixão passasse, ao contrário, a adorá-la. Orgulhosa da própria beleza, tinha de estar sempre rodeada de admiradores para manter o ânimo. Convencera-se de que mostrar interesse por alguém seria o mesmo que rebaixar-se.
E aí começa a tocar Pedestal, Portishead.