8.10.06

"O encontro marcado", de Fernando Sabino

Meu pai, mineiro, cedo me providenciou alguns livros de crônicas do Fernando Sabino. Atirei-os a um canto e recusei-me a lê-los, porque julguei-os "chatos"; já mais velha, peguei-os por acaso e adorei. Não tinha graça antes porque eu não entendia as piadas. Assim, aprendi com Sabino que algumas leituras pedem amadurecimento.
Quando resolvi embarcar neste "O encontro marcado", procurei me apresentar o mais leve possível. Porém, não foi possível me livrar do peso da leitura das crônicas e da minha simpatia pelo escritor; no outro prato da balança, porém, havia seu mal-explicado ostracismo e a pecha de "fazedor de biscoitos" - alguém que só consegue escrever em tamanho pequeno.
Sabino parece ter escrito baseado nas próprias experiências, como em muitas de suas crônicas. E algo que preocupa após algumas páginas é exatamente isto: a semelhança com o ritmo das crônicas. O leitor se pergunta se Sabino, habitual nadador de piscina, conseguirá atravessar o mar sem se afogar. Porém, esta dúvida acaba por se dissipar: o mote do livro é exatamente este:
"Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro."
O autor Sabino, talvez como na própria vida, fez da suposta limitação de suas crônicas o ingrediente de um romance sincero, problemático e que o próprio autor deve ter detestado pelo menos durante um segundo depois de publicado.
Sabino vai mais longe (ou mais fundo) com "O encontro marcado" do que em suas crônicas. As emoções são mais perturbadoras e densas; os conflitos, mais expostos. Sem a obrigação de ser “engraçadinho” nem limite de espaço, ele produz altercações geniais. Aliás, o diálogo de Sabino é merecidamente usado e abusado: são páginas e páginas cheias de travessões à esquerda. Com isso, muito é deixado à interpretação do leitor - ótima qualidade em tempos de best-sellers que nada deixam à imaginação. Porém, há um pouco de falta de confiança de Sabino em si, ou no seu leitor; ou talvez, tenha caído na tentação de forçar uma interpretação. Às vezes a frase é cortada por uma explicação tendenciosa, como que a dizer: "olha aqui, Eduardo tem razão; esta pessoa se aproveitou dele/está contra ele, que está apenas se defendendo". Isto não é nada bom.
É notável a condução, o ziguezague dos assuntos. O romance está muito bem-amarrado. Todas as subtramas são consistentes, mas o melhor exemplo é o "caso da meretriz". Funciona muito bem; como se trata de um romance inspirado em fatos reais, a escolha da supressão ou não de fatos "triviais" é crucial. A narrativa deste caso aparentemente trivial durante a viagem ao Rio causa estranhamento no leitor (assim como o acontecimento real deve ter parecido a Sabino), porém seu reaparecimento contínuo na história causa uma verdadeira perturbação. É kafkiano; traz a idéia do "plano divino"; a dor da injustiça; um fantasma do passado - quem não tem os seus? - e muito mais.
É preciso falar um pouco sobre a "atualidade" do livro - se é que podemos chamar assim. O problema: é difícil enxergar o cenário do romance, o Brasil de ontem. A vida de Eduardo Marciano “termina” nos anos 50; hoje muitos já não nasceram sob a ditadura, ou pelo menos num tempo onde não se sentia seu peso. O Brasil antigo, empoeirado, causa sim aos jovens de hoje um certo asco; numa espécie de amnésia neurótica coletiva, fingimos que sempre estivemos brandindo celulares prateados, Honda Civics e presidentes de esquerda; mas o país não é só esse. O futuro não chegou, não. Ainda não saímos da roça. Um fio de Ariadne, o livro não titubeia em nos retraçar o caminho pelo qual viemos parar aqui; e a que custo.
Parece não ter sido a intenção, mas “O encontro marcado” é como uma luz trêmula a iluminar o passado do país; sua infância e adolescência se assemelham com aquelas descritas por José Mauro de Vasconcelos em “Meu pé de laranja-lima” e suas continuações (“Vamos aquecer o sol” e “Doidão”), inclusive na angústia. Só que, enquanto Vasconcelos enveredou por uma adolescência mais travessa, Marciano-Sabino escolheu a angústia literária.
E aqui, uma talvez inútil elucubração: a página 68 lembra o 11 de setembro. O significado do terrorismo como os hodiernos o presenciaram, dissecado numa conversa/ troca de provocações entre três jovens na década de trinta. Realmente era inevitável o aconteceu.
Já como história universal, romance de formação e coisa e tal, é apenas razoável. Impressionante, mas razoável. Nem tudo o que impressiona é necessariamente genial - vide os filmes de Ken Park.
Mas é preciso aquiescer: o livro tem momentos geniais. A crítica tem de ser justa ou pelo menos tentar; não é admissível se apoiar em velhos clichês. Aos que acusam Fernando Sabino de mero “fazedor de biscoitos”: ele fez mesmo um biscoito. Um biscoitão, do tamanho de uma pirâmide. Eu vos acuso de falta de apetite. Aliás, falta de apetite não; de gula. Vocês não são mais crianças; não acham a menor graça na procura eterna, e isso, se não é defeito, ao menos não dá vontade de ser amigo de vocês.

(quando digo que eu seria uma crítica literária mazinha, é isto o que quero dizer)
(crítica feita para a matéria Jornalismo Literário em 2003 ou 2004, quem se lembra?)