É, isso é um exercício diário de enxugamento e reciclagem das minhocas que tenho dentro da minha cabeça, senão elas começam a sair pelos ouvidos e pela boca e assustar os passantes. Mas não escrevo só aqui, assim como tenho que explicar às pessoas dali, de lá e de acolá que não escrevo só ali, lá e acolá.
Fui a uma papelaria e comprei um caderno pautado, de capa dura, sem espiral. A idéia surgiu quando li numa dessas seções de revista (chamada Consumo ou Presentes ou Novidades com retratinhos recortados de produtos coloridos diagramados de forma calculadamente desorganizada, e o precinho embaixo, em negrito) que a última coqueluche era pagar uma fortuna por um bloquinho de notas preto, fabricado por uma companhia francesa, onde tradicionalmente "grandes escritores" tomavam suas notas. Obviamente os grandes escritores, quando não eram grandes e não tinham grana, foram até a papelaria mais próxima e pediram um caderno, e esse era o que tinha. Se quisessem mesmo fazer o que um escritor com a grana e o ego de vocês faria (no quesito superfície pra escrever e pra que vejam que estou escrevendo), compravam a porra de um palm e digitariam nele com a canetinha especial comendo carpaccio no Espaço Unibanco. Mas não, a onda é tirar ondinha de cult.
Pois fui comprar uma superfície encadernada não tanto por este, que seria um mau motivo, mas por outro. Enquanto eu comia um brotinho com coca-cola no Mister Pizza, tive uma idéia que parecia importante. Como outras, que tive no metrô, andando na rua, enquanto almoçava no Centro. Minha memória funciona como uma esteira rolante, preciso anotar tudo, e rápido, senão esqueço. Eu anotava tudo em pequenos papeizinhos, post-its subtraídos do bloco do trabalho, versos de notas fiscais - e desta vez foi na metade do guardanapo que o homem tinha me dado. A idéia era maior, mas o que escrevi foi:
ônibus de ligas frouxas em alta velocidade
- Eu estava pensando em suicídio
- Eu sei
E deixei do lado do computador. Dois dias depois, não estava mais lá. Provavelmente minha mãe o achou numa das surtadas arrumações para receber prospective acquirers da casa, e aparentemente Carolyn Burnham achou uma boa idéia picotá-lo em pedacinhos e comê-lo para não pensarem que comprariam a casa de uma suicida em potencial.
O computador também anda com a placa-mãe meio torta das idéias, e quando ela desencaixa da placa de vídeo, o monitor simplesmente apaga e não há santo que recupere os arquivos do Word. Deixei minha CPU de entranhas à mostra, assim é só cutucar a placa de vídeo com um lápis que ela volta. Tudo isso aconteceu várias vezes, de forma que resolvi comprar o caderninho e manter minha sanidade mental.
Pois a Solução Final (do livro, A Feia Noite) ficou uma verdadeira salada, quatro páginas riscadas, rabiscadas, asteriscos e setinhas, três cores de caneta diferentes durante quatro dias, durante os quais faltou luz, tive insônia (ou melhor, tive sono e inspiração ao mesmo tempo), fez um calor infernal e levei a mão à boca algumas vezes, tanto por sono quanto por espanto. Mas é isso mesmo? Será?
Escrevo até lendo, e passei a ler o Retrato de Dorian Gray. Relendo, que li mal aos 13 anos, mas aos 13 anos aquilo não tem graça nenhuma. Mas era a inspiração de uma das frases mais antigas escritas no meu livro, e eu precisava reler pra ter certeza que é isso mesmo? Será?
Ah, o livro é cheio de frases muito citáveis em blog, tanto que já vi uma porção por aí. Fiquei com vontade de citar, mas na verdade acabaria abrindo aspas, digitando o texto integral, fecha aspas. Não o texto integral, minto. Certo capítulo consiste de páginas e páginas descrevendo um fausto absoluto que não quer dizer mais nada. Atenção, escritores de hoje, é aí que as referências a Simpsons e Strokes vão parar (o que não quer dizer que sejam interditas, como o fato de eu odiar a van de cachorro-quente parada em frente à garagem do vizinho não me qualifica necessariamente como elitista enojada da ralé, etc.).
E agora, tendo revisto também O último tango em Paris, percebo qual seria a verdadeira utilidade desta casa antiga de duzentos e quarenta metros quadrados, mármore italiano extinto, quartos para dois criados, parquê paulista de cinco cores, móveis de mogno escuro e jacarandá, espelhos de cristal bisotado, afrescos, lustres, frisos florais nas portas e nas paredes róseas, pratarias, bibelôs, obras de arte, boudoirs, abat-jours, armários camuflados (armários camuflados são muito importantes!) e para uma pessoa morar totalmente sozinha, que os criados não contam. Ah, eu ia falar, mas vocês já entenderam.
Preferi morar num apartamento pequeno, escrotamente funcional e clean, armários embutidos, estantes do Shopping da Matriz. Mas percebo que o novo é a versão contemporânea do significado do meu atual. Os jovens aristocratas sem filhos se mudam para apartamentos escrotamente funcionais. Seja por motivos funcionais (como "viver fora do Rio"), motivos intelectuais, "qualidade de vida" ou putarias mesmo. Quase não há velhos nem crianças. Encontrei no elevador um amigo do meu padrasto com a amante. Encontrei outro elevador entupido por um jovem casal cheio de malas, saíram para o táxi que os levaria ao aeroporto. Plus ça change, plus c'est la même chôse.