Réquiem para avó
Eu a conheci aos 57 anos. Eu, filha única filha de filha única. De vez em quando eu perguntava pelos meus tios. Quer dizer, tios havia às dúzias, mas tios-avós, tios-primos. Todos tinham irmãos naquela família, eu perguntava o porquê justamente porque parecia atípico. Da primeira vez que perguntei minha avó fez uma cara estranhíssima, também a minha mãe - eu não sabia, mas eu deveria ter tido tios.
Depois soube, me contaram que minha avó foi miss (a sua avó foi miss!) , e eu fui logo perguntando: Miss Mundo ou Miss Universo? Me responderam com uma gargalhada - Miss Gato, em 1948, e depois outro que ela nem lembrava o título, de tão comprido. Ainda me contaram que ela só não continuou a "carreira" porque a bisavó não deixou.
Também me lembro daquela vez em que eu estava lendo jornal (ou seria um livro do Drummond?) e vim até a sala perguntar o que era prostituta. Meus pais estavam brigando de novo, eu não me importava tanto assim, para mim só significava que eles estavam "ocupados", então fui direto à avó. Ela respondeu, rápido, que era uma vedete, dessas de teatro, e sim, eu sabia o que era vedete - uma dançarina de cancan, que fazia shows com roupas antigas. Isso se encaixava perfeitamente no contexto, de forma que me dei por satisfeita. E olhamos para eles, ela pensando que aquilo faria danos irreparáveis à minha cabecinha, eu pensando que não queria repetir os erros deles, imagine, já brigando de novo.
Claro, a essa altura, quando a conheci, ela já tinha passado pro outro lado, como deve ser - de constrangida a constrangedora. Quando meus amigos me visitavam, ela aproveitava para contar tudo o que eu fazia de errado ou impróprio na opinião dela, como não arrumar a cama - eles apenas sorriam. Eu me perguntava como elas não tinham vergonha de outras coisas que faziam, se tudo o que eu fazia tanta vergonha dava. Obrigada à viagem à Disney, por exemplo, tivemos um guia, para variar, muito engraçadinho, animador de velório, que promovia gincanas no ônibus. Minha mãe e minha avó empolgavam-se com a idéia, e pior, tinham um número de itens de gincana constrangedoramente grande. O animador pedia: uma calculadora! E minha mãe tinha. Depois: uma lapiseira roxa! E minha mãe: peraí, acho que eu tenho! acho que eu tenho! E não tinha. Certo. Atenção... eu querooo... (e elas presas no suspense) um pente vermelho! E minha avó: eu tenho! peraí... achei! E sacava um pente vermelho. Disso, céus, elas não tinham vergonha? Não consigo olhar para o bom pente vermelho sem lembrar disso.
Minha avó defendia minha mãe com unhas e dentes, isso não é só uma força de expressão, certa vez quando me recusei terminantemente a falar pelo telefone com a filha dela, aquela (insira o palavrão adequado), ela me agarrou pelo cabelo e sacudiu, meus óculos foram parar no chão, lascados.
Minha avó, quando me via pronta para sair em trajes do que se chamava, na época, clubber, perguntava, com os olhos flamejantes: Tá virando hippie?
Eu sabia que algumas pessoas perdem o bonde da história, ainda mais quando ela já anda num trem-bala. Para mim, ela era a querida avó que precisava de ajuda e compreensão. E não só dela. Pai, não compre isso agora, você não pode. Mãe, não deixe ele te tratar assim. Eu estou virando a mãe de minha família.