23.2.05

one thought at a time

As pessoas questionam como pude ser evangélica praticante e raver barra clubber ao mesmo tempo.Passei a melhor parte da minha adolescência de braços no ar (rexona não te abandona), conectada a uma grande energia superior, solitária no meio de centenas de pessoas, murmurando palavras estrangeiras, saltando em transe. Se fosse outra época, eu seria uma bacante, uma bruxa na festa do sol, uma hippie em Woodstock, what does it matter. Grandes lugares abertos. O Maracanã com duzentas mil pessoas clamando. Sítios em Vargem Grande. Doutras vezes, lugares cheios, suarentos, intransitáveis, quentes e apertados. Mas a sensação é a mesma, inigualável.
Vogais. Abertas. Aaaaaaatividades estigmatizadas. O proibido.
Eu passei a adolescência acossada. Em casa, um em cada casa, minha mãe me perseguia pelo lado da religião, e meu pai, pelo clubbing. Na escola, eu ouvia perguntas do tipo "Você é metaleira? Ué, então por que esses anéis?" e "Por que você não fica com ninguém? Você é lésbica?". Logo aprendi que a melhor resposta não era nem o silêncio, mas um monossílabo, o essencial, o laconismo que confunde e não explica.
Eu poderia explicar os anéis por exemplo. Que eles me faziam sentir uma dama antiga, e o frio que eles faziam nos meus dedos me impedia de dormir durante a aula, que eu já tinha visto o que faziam às pessoas que dormiam; gostava até do azinhavre que eles deixavam, e do suor que eles provocavam, e depois provava a base dos dedos. Gosto de anel. Era um ritual interessante escolher os anéis toda manhã, morta de sono, conforme meu estado de espírito, e no final retirá-los todos de uma vez, tilintando uns nos outros.
E menos ainda explicar que J.C. queria que eu honrasse o nome dele me guardando para seu escolhido para mim. E que, na verdade, eu não acreditava muito naquilo; mas era um comportamento que eu achava preciso manter até que quisesse abandonar a minha pele antiga, até que fosse mágica o suficiente para me defender e honrar a totalidade das coisas sem precisar do meu corpo intacto. Na verdade, havia um ponto onde a integridade emocional passava a atrapalhar. Eu queria pressentir esse ponto e não ser colhida antes do tempo, nem depois: no tempo exato. Não queria virar abóbora. E que eu fizesse a tal colheita. Eu reprovava Iracema. Ela não controlou nada.
Em suma, as pessoas que tentavam me decodificar obviamente falhavam. E ficavam putas, ou pior, ressentidas. Acho que isso nunca vai deixar de acontecer.