8.7.08

A vida aqui é difícil porque para mil coisas erradas e irritantes que vejo há apenas uma louvável e que aquece o coração; como se não bastasse, há complacência e compreensão para com as coisas erradas e há despeito e vontade de estragar as coisas bonitas e práticas.

Hoje, por exemplo, fui ao centro. Saí em plena Uruguaiana: calor, poças de esgoto, paralelepípedos, poluição audiovisual (até nas roupas) e uma terrível propensão a perturbar a paz dos poucos que conseguem obter alguma. Há os que andam devagar, num ritmo arrasta-pés que não expressa calma ou tranqüilidade, mas puro espírito-de-porco em bloquear escadarias e calçadas.

Um senhor à minha frente na escada, retido por um casal espalhadaço, resmungou alto algo sobre gente lerda depois de ter pedido licença sem resultado. Enquanto finalmente dava passagem, o homem do casal (um homem muito feio e muito bochechudo) virou a bochecha devagar por cima do ombro, com os olhos esbugalhados de contrariedade e o queixo naquele ângulo de 120 graus que todo carioca utiliza quando lhe chamam a atenção, dizendo à mulher: "DEIXA ELE PASSAR. ELE TÁ ESTRESSADO."

Ah, estressado. Estressado é o novo histérica - com a vantagem de ser unissex. Aquilo de que te chamam quando não têm qualquer razão, mas querem que você estoure para obterem alguma. Aliás, guia para lidar com epítetos como estressado e histérica: não caia na pilha. Conte até três e diga o mais devagar e serenamente possível, de preferência com expressão de beato: sim... isso mesmo... estou es-tres-sa-dís-si-mo. Agora... fazendo o favor... dá para o senhor tirar o carro da frente da minha garagem? Quem vai espumar de raiva é ele, e vai ter de fazer o diacho da "coisa certa".

Pois é, fico encantada com pessoas ranzinzas. É um dos meus soft spots. Não pessoas distímicas que reclamam de qualquer coisa, mas as que parecem genuinamente incomodadas por alguma coisa com que mais ou menos concordo e sabem se sentir bem quando aparece a oportunidade. É um grande passo em direção a ser minha alma gêmea (não literalmente... - oh, foda-se), porque quer dizer que a pessoa se importa. Como eu.

É essa a minha grande doença: eu me importo. E eu gosto disso. Me aperta o coração ver gente que se importa deixando de se importar de tanto ser chamado de estressada e histérica quando reclama. É um fenômeno muito comum aqui no Rio. Vejo as pessoas se fazerem de cegas, surdas e mudas - inclusive para os próprios atos de pessoa-que-já-não-se-importa - para dizer que o Rio continua lindo, que não está tão ruim assim... Só uns poucos bravos sobrevivem a essa anomia.

Como se não bastasse, também sou esquizóide. Deixo para a Wikipédia defini-lo, mas basicamente detesto meu espaço pessoal invadido, e minha reação a elogios ou insultos é ou invisível ou imprevisível; um comentário que ouço bastante é puxa, você é bem tranqüila em relação a isso, outro é olha para mim enquanto fala, outro ainda é te vi outro dia na rua e você nem me reconheceu (pois é, amigos, eu vos amo, apenas sou terrível para demonstrar, liguem para mim e marquem coisas e compareçam.)

Mas ô combinaçãozinha fodida. Isso quase me faz acreditar em Deus - um Deus vingativo que mandou algum filósofo existencialista reencarnar no meu corpo, no Rio de Janeiro, sob a gestão Cesar Maia.

Pois então. Parece que eu gosto de reclamar? Foi mal. Não gosto. É que aqui nessa cidade há vastíssimo material para fazer isso. Preferia que não fosse assim. Mas as pessoas de cima e de baixo não estão colaborando. Pelo contrário, estão cagando em cima da cidade. E fico cada vez com mais vontade de me evadir. Não é mais uma fantasia romântica. Estou mesmo procurando um jeito de emigrar, mesmo sabendo que nenhum lugar é perfeito e que os creeps só mudam de patologia.

De qualquer forma, hoje, depois de ver amostras de todas as idiotices do mundo, no caminho de volta para casa vejo uma moça com um estojo de instrumento de cordas às costas conversando e sorrindo para o seu avô enquanto andam por uma calçada não muito esburacada. E isso me dá um pouco de esperança na humanidade. Claro, podia não ser nada daquilo, o cara podia ser professor ou amante dela (ou professor e amante dela), mas mesmo assim foi uma abençoada reunião de coisas legais.